O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O tal do Um Qualquer

- por Camilla Lopes

Ela desceu para fumar um cigarro enquanto esperava sua carona. Chovia fino e a paisagem estava cinza como Ela odiava, formando aquele cenário aconchegante para pensamentos indesejáveis. Ela estava sozinha, vazia e a vida ao seu redor parecia acelerada demais, vivida por viver. Quanto tempo mais aquele sentimento iria durar? Já fazia tempo. Alguns meses, talvez. Ela tinha medo de voltar para casa e conviver com ela mesma, não sentindo um ponto em especial para o qual voltar a atenção. O tal do objetivo de vida, a tal da convergência. Sabe, Ela é uma idiota por viver como numa tragédia shakespeariana. As coisas são mais simples do olhar de fora, Ela pensa, tentando ser fria. Mas não entende como certas coisas chegam a certos pontos. Metamorfoses, nostalgias etcétera. Ela não sabe mudar, quer ter o tempo nas mãos, dividindo-o em porções perfeitas de momentos perfeitos. Que se foda a perfeição, na verdade. Sim, existem momentos perfeitos, mas o que é a vida se não a busca por eles, no meio de uma neutralidade – talvez infelicidade - constante? De Shakespeare a Sartre, que masturbação mental. Paremos por aqui antes que eu dê uma de intelectual e esqueça que é uma perda de neurônio pensar sobre isso, Ela se corta.
Deixo tudo assim não me acanho em ver vaidade em mim Eu digo o que condiz Eu gosto é do estrago, Ele cantarola com um cigarro na boca e Ela se desconecta do fluxo de consciência, olhando para Ele. Jaqueta jeans Hard Rock Café - Save The Planet, um tênis do tipo sujo-rasgado. Um Bob-Dylan-sem-querer, porque Save The Planet’s e anos 60 hoje em dia sempre parecem forçados. Ele também olhou para Ela, meio inquieto. O que poderia acontecer? Nada demais. Coisas “demais” ficam para filmes, vontades, canções. Incrível como devemos perder almas gêmeas todos os dias por um banho atrasado ou um vagão de metrô errado. Ela começa a pensar nas coisas “demais”, na ficção que escreveria quando chegasse em casa e que provavelmente não sairia do jeito que Ela queria. Nunca sai. Ela pensa em como admira quem escreve livros e como isso não vira uma frustração na vida do escritor do jeito que é na sua. E pensa mais. Pensa demais. Ele a toca no ombro, Ela deixa novamente o mundo paralelo. What the hell? Ele está com a mão estendida no meio deles dois. Ela olha no olho dele, não entende e olha para baixo. Um bombom. Ela aceita, não é preciso dizer nada. Não é preciso pensar em nada. É o momento perfeito. Só continue respirando enquanto espera por mais outro.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O esforço pra lembrar é a vontade de esquecer




-por Otávio Silva



Muito se passou entre o início e o final de nossa história. Dez segundos? Dois meses? Três talvez. Um ano ou dois. Dez anos? Uma eternidade. Quem sabe até quando iria continuar.

Eu era ninguém perto dela. Sentia-me sempre um nada. Um ser insignificante: pequeno demais para ser notado, grande o bastante para ser esquivado. Durante a maior parte do tempo foi assim. Desde o dia que eu passei por aquela boca, até hoje, quando da boca dela saiu o fim.

Encolhi perto dela. E ela não me queria distante. Pôs-me num potinho de vidro. Daqueles com gargalo estreito e uma cortiça tampando. E carregava esse potinho pra tudo quanto é lado. Até que a situação se esgotou.

Ao passo do calendário, ela ia se cansando de mim e daquela garrafinha em que me carregava. E passou a me esquecer pelos cantos, quando saía. Às vezes jogado mesmo. Resolvi reclamar daquilo e, um dia, ganhei um cantinho especial pra mim na estante do seu quarto. De onde eu ainda podia tentar enxergar, por de trás das pálpebras fechadas, o que ela sonhava à noite...

A terra girou mais um pouco em torno do Sol e eu acabei rebaixado, como Plutão, que era planeta e agora não é mais. Fui colocado atrás dos livros naquela mesma estante. Uma tentativa frustrada dela de me esconder os seus novos amores, que invadiam a sua cama, em noites escuras frias e chuvosas, ou tardes quentes e vazias.

Eu ainda podia ver, pelas frestas dos livros inclinados um ao lado do outro, flashes do quarto. A cabeceira de cama, quase nunca habitada por apenas uma cabeça. O criado-mudo, ao lado da cama, que me contava sobre seus amantes, quando ela estava fora.

O resultado disso tudo foi o meu amadurecimento, o meu conseqüente crescimento diante do estado que eu me encontrava. Cresci que não encontrava mais na garrafinha calor e conforto, mas pressão e sufoco. As paredes de vidro viviam embaçadas do meu suor, como o boxe fica depois de um banho quente.

Ao mesmo tempo, parou de chover na horta dela. E creio eu que por isso, ela resolveu lembrar-se de mim. Como se nada tivesse acontecido, como se hoje fosse o dia seguinte àquele que ela me guardara ali, ela tirou livro por livro da estante, em frente à minha garrafinha e abriu um sorriso pra mim.

O mesmo sorriso lindo de sempre. Todos os dentes perfeitos, harmoniosos como o som produzido pelo teclado de piano que eles me lembravam. A sua boca emoldurava-os com a mesma suntuosidade de um ornamento coríntio da Grécia Antiga. Os seus olhos castanhos guardavam a vivacidade, do mesmo modo que a garrafinha ainda me guardava. Os cabelos, o nariz, a face macia... Tudo exato como a imagem que permanecia em minha cabeça.

Ela se lembrou de mim. Planejava me tirar do potinho, finalmente. Mas eu já não soube se queria mais. É difícil se acostumar com um lugar, mas mais difícil ainda é se desacostumar; se desapegar de uma lembrança de realidade perene que parece passageira. Assim, em vão, tentou me puxar com dedo pra fora do gargalo estreito daquela garrafa. Por eu ter crescido, porém, não era mais possível a minha passagem, nem pela boca da garrafa, nem pela boca daquela que me pusera ali dentro.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Resenha do texto “Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal”, de Milton Santos.

-por Daniel Bagagli


 

Texto: http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/obex02.html

    A respeito do texto, Milton Santos descreve e analisa criticamente o fenômeno atual da globalização, citando suas bases estruturais e suas principais características, destacando, sobretudo, seus atores; além de auferir considerações finais sobre o processo analisado.

    Em primeira instância, Milton Santos logo adverte que o fenômeno da globalização atual não é "semelhante às ondas anteriores, nem mesmo uma continuação do que havia antes" (p. 140). Mais ainda, define-o como tendo influência, direta ou indiretamente, para a maior parte da humanidade, sobre todos os aspectos da existência.

    O autor caracteriza o processo, ainda, como um fenômeno que não se verifica de modo homogêneo, tanto na sua extensão quanto na sua profundidade. Santos observa que "os indivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno, cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares" (p. 143).

    A cultura de massa adquire papel fundamental para Milton Santos, como um pilar do processo em análise, que tenta homogeneizar e impor-se sobre as culturas populares. É resultado de um mercado cego e alheio às diversidades culturais dos lugares e das pessoas.

    O que é interessante na obra de Milton Santos, é que ele discute uma questão chave dos dias de hoje: seria esse processo, um processo irreversível?

    A leitura atenta nos deixa claro que o autor tem completa ciência que a idéia de irreversibilidade da globalização atual "é aparentemente reforçada cada vez que constatamos a inter-relação atual entre cada país e o que chamamos de 'mundo'" (p. 149). Isto é, os países estão cada vez mais se juntando em um todo indissociável, criando relações também cada vez mais difíceis de serem desfeitas.

    Além disso, Milton Santos destaca que o "papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa" (p. 159). Ou seja, a sensação de irreversibilidade se agrava ao analisarmos a situação dos objetos que nos cercam, permitindo acharmos que o futuro em nada será muito diferente do que esse presente que vivemos. "Daí a pesada onda de conformismo e inação que caracteriza nosso tempo, contaminando os jovens e, até mesmo, uma densa camada de intelectuais" (p.159), completa o autor.

    Todavia, Milton Santos declara: "A globalização atual não é irreversível" (capítulo 29, p. 159). Ele apresenta, assim, inúmeras opiniões e análises que o levaram a pensar dessa maneira.

    Em princípio, para Milton, o "novo" teria que nascer das centralidades – baseado na História, em que os atores principais eram sempre os países centrais. Porém, para ele os países centrais a mudar o rumo da História, agora, não são mais os países da Tríade (EUA, Japão e Europa): mas, sim, a periferia.

    A periferia – que com o processo atual de globalização é influenciada e cada vez mais dominada pela imposição dos interesses da Tríade (e de suas empresas globais)- seria o lugar em que nasceria a mudança. Isso porque é aí em que se dará o maior numero de indigentes e pobres, resultado do fenômeno de globalização atual. É dessa convivência com a escassez que nascerá e se fortalecerá a cultura popular (resistentes à cultura de massas e ao processo em questão), baseada na solidariedade social e na compaixão.

    Dessa convivência com a escassez ampliar-se-ia, ainda, a consciência dessa grande massa, passando a se questionarem quanto ao seu papel e importância no mundo.

    As culturas populares seriam capazes de reverter a globalização atual (vertical "de cima para baixo", para "de baixo pra cima"). Reverteria, também, a centralidade das ações: atualmente, o dinheiro é o motor primeiro e último das ações dos homens. Para Milton Santos, a centralidade das ações tem que ser o Homem, e o bem estar dele. E somente as culturas populares conseguiriam dar forma a isso.

    O fenômeno de globalização talvez seja, em si, irreversível. Entretanto, devemos nos questionar: que globalização queremos?

    Milton Santos responde: uma outra.

    Uma outra cuja centralidade das ações seja localizada no Homem, ao invés do dinheiro. Uma outra que se caracterize por cooperações horizontais, baseadas na solidariedade social e na compaixão. Uma outra caracterizada pela revalorização filosófica do Homem.

    "Essa revalorização radical do individuo contribuirá para a renovação qualitativa da espécie humana, servindo de alicerce a uma nova civilização" (p. 169).

    

domingo, 7 de novembro de 2010

Teste Vocacional do Brasil

-por Otávio Silva


 

    Vocação, vocativo, invocar, evocar... Quando dizemos que alguém tem vocação para realizar algo, queremos dizer que essa pessoa está respondendo a um chamamento. Chamamento talvez de Deus, da Vida, dos pais, de alguém. É uma inclinação, uma habilidade, um jeito especial para aquela coisa... É um dom! É um dom... Engraçado.

    Seus hábitos, suas perguntas, seus valores, suas respostas, sua personalidade, seu jeito... Tudo desmascarado, desmistificado. Tudo a sua disposição para você escolher o que quer fazer de sua vida. Tudo à disposição para escolherem o que querem fazer de sua vida. Tudo à disposição.

    Todos doutores: médicos, publicitários, arquitetos, advogados, designers, nutricionistas, dentistas, engenheiros. Todos sucedidos: jogadores, pilotos, atletas, artistas, astros... Astros! Não é nem um pouco fácil chegar a tudo isso, mas ainda assim todos tem alguma dessas respostas nesses testes.

     Noites sem dormir, livros devorados, medos transpassados, cálculos certos, cálculos errados. Turnos virados, chefes estressados, treinos esforçados, aulas mal assistidas. Cenas e jogadas ensaiadas, maquiagens borradas, pernas machucadas. Você quer passar por tudo isso? Não? Nem eu.

    Porque ninguém tem vocação para ser, assim, sei lá... Faxineiro? Por que não? Quem sabe?! Limpador de vidros em andaime! Que tal? Passador de roupa, servidor público, taxista, motorista de ônibus, pedreiro. Por que não? Quantos testes você conhece cujo resultado indicou o caminho de Deus? Ou ser professor do ensino público? Ou funcionário do sistema carcerário brasileiro?

    Parece-me que este negócio de vocação é uma pura justificativa moral ou talvez social para que as pessoas sigam um caminho profissional bem aceito, um caminho que, sobretudo, aumente, ou ao menos mantenha, o extrato hierárquico social que a pessoa ocupe. E o que acontece com as outras profissões é que, além de continuarem sendo sempre mau vistas, elas também são desvalorizadas por grande parte das próprias pessoas que as executam.

    É claro que existem pessoas com vocação ao trabalho voluntário, ou ao serviço social comunitário, mas quantas realmente sabem disso, ou quantas são impulsionadas para outros caminhos por pressão das pessoas ao redor? E quantas pessoas querem realmente ajudar o Estado? Ou apenas sugar dele o que dele conseguir? Férias remuneradas, décimo terceiro, irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade, aposentadoria integral...

    Cada um só quer se ajudar. E também ajudar os mais próximos. Ache a sua vocação, ajude-se, e tente estar em uma linha não muito distante do horizonte daqueles que conseguirem o sucesso na área onde decidirem seguir.

domingo, 31 de outubro de 2010

Mentalmorfose Ambulante

-por Otávio Silva


 

    O tele transporte é, basicamente, a ideia de conseguir suprimir as nossas noções de espaço e tempo ao mover um objeto de um lugar para outro, em pouquíssimo tempo, sem a passagem por um espaço intermediário. A internet e o scanner são, então, formas de tele transporte, já que transportam informações de aparelhos em diferentes lugares para outros em uma velocidade praticamente instantânea? Não, ambos se utilizam de cabos e fios até mesmo inter oceânicos para realizarem seus trabalhos. Serviços de comunicação sem-fio, como a internet wi-fi, ou mesmo o antigo rádio, se transportam através de ondas magnéticas, eletromagnéticas, de rádio.

    Experimentos recentes promoveram a locomoção de informações, ainda que muito pequenas, como fótons, por até dezesseis quilômetros, sem transição espaço-temporal. Quem sabe, um dia, com a evolução das pesquisas e tecnologias disponíveis, possamos nós, seres humanos, sermos objetos de tele transporte. Tal experimento se deu através de uma forma de um "scanner" de tais substâncias e a posterior "impressão" destes em outro lugar.

    Imaginemos o mesmo procedimento com seres humanos. Uma pessoa que tivesse todos seus átomos, moléculas e células, todas, todas (eu disse TODAS) suas substâncias eliminadas, armazenadas e transferidas para outro lugar, onde se re-materializariam, poderia ter sido tele transportada de fato? Que mais uma pessoa, além de sua matéria, é?

    No caso, a pessoa em si teria morrido para dar lugar, ou melhor, para dar corpo a outra. Ou será que é essa a fórmula mágica que deva ser utilizada após três dias da morte? Brincadeiras e religião a parte, parece totalmente plausível dizermos que uma pessoa é feita das experiências às quais ela foi exposta ao longo de sua vida.

    Sendo assim, é você exatamente a mesma pessoa que tomou aquela bronca, da qual você se lembra, da professora do jardim por falar alto durante a aula? Foi você quem fez aquele excelente contrato com a empresa logo que saiu da faculdade? Foi você mesmo quem caiu de bicicleta e quebrou o braço aos 10 anos? A mesma pessoa que está lendo este texto e tem um monte de preocupações diárias e visões de mundo agora é realmente a mesma que saiu do útero de sua mãe? Se não, quem é, então?

    Caso você menospreze as experiências que teve durante a vida e todas as noções que sua mente propõe todos os dias diante das situações a que ela é posta em trabalho e valorize mais a sua forma material e substancial, é possível que você se dê por satisfeito se você for retirado de sua vida e um clone ou uma imagem "scanneada" sua seja posta no lugar.

    Caso você não se dê por satisfeito com isso e valoriza a sua vivência psicológica em detrimento do material, é capaz de concordar com alguns pontos: um casal de velhinhos que já tenha filhos e netos não pode se dar ao luxo de dizer que conheceram um ao outro durante a adolescência, mesmo se assim fizeram, pois as pessoas que eles conheceram há um tempão não são as mesmas que hoje chamam de "marido" e "mulher", uma vez que cada uma delas já passou por inúmeras situações na vida deles desde que se conhecem que com toda certeza modificou muitas visões, convicções e até mesmo modos de ser.

    Da mesma maneira isso acontece com um patrão que contratou seu empregado há muito tempo, com dois amigos de infância, com um pai e um filho, um presidente e seu eleitor, um criminoso e a vítima e qualquer outro tipo de relação humana. Por isso que algumas ações devem ser muito bem pensadas, como a pena de morte, a votação, o aborto, o casamento, a gravidez, a contratação de alguém.

O que acontece geralmente é que essas modificações, que as pessoas sofrem, ocorrem talvez de modo pouco sensível para quem acompanhe o processo todo. Qualquer tipo de experiência é capaz de modificar uma ideia: a visão de um por do Sol, a visualização da possibilidade de alcançar o poder, a audição de um "te amo", a rejeição de uma pessoa querida, uma derrota amarga, um bom filme, uma música intensa, quem sabe algum desses humildes textos que aqui habitam o blog. Considere, logo, a possibilidade de que todas essas experiências juntas possam mudar a mente de alguém. Os conhecimentos se encadeiam em forma de um tetrix, cujas peças se sobrepõem, se misturam, mudam de posição, deixam espaços vazios, são postas de lado...

Um componente interessante são as viagens. Algumas pessoas distanciam-se do seu ambiente e fazem coisas que não eram acostumadas a fazer, exatamente com esta justificativa, como se não contasse para nossas experiências, como se fosse posta em memory card, que podem retirar quando quiser. Também por isso que quando alguém faz uma viagem longa para um lugar diferente, dizem que ela volta diferente. Pois quem tem contato apenas com a amostra inicial e final da pessoa consegue distinguir um do outro e ao mesmo tempo que quando voltamos de alguma viagem dessas, não somos somente nós quem mudamos, mas o lugar e pessoas a nossa volta também.


 

Bibliografias:


 

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Direito Penal do Inimigo

-por Otávio Silva


 

Ele é diferente. Você sabe que ele é seu inimigo, você sabe. Por mais que ele tenha discernimento para fazer as coisas certas, ele faz as erradas. As leis, modos de tratamentos, penas... Tudo para ele deve ser diferente. Por que ele é diferente. Estranho no ninho. Anômico. Espero que ele fique preso para sempre. Aliás, ele já está. Espero que ele continue preso. E para sempre. Que as suas grades permaneçam calcificadas paralelamente em volta dele para que ele não saia jamais. Não dá. Ele não pode viver fora de lá. Seria como uma bomba no organismo social. Espero que os socos de revolta contra as paredes da cela continuem sendo em vão, inúteis, fragilizada sejam. Batidas em pontas de facas. Que ele, um dia, apodreça lá dentro. Torne-se pedra dura e fria diante do calor provocado por sua violência. Que ele continue respirando e transpirando sangue, sozinho em sua prisão. Sangue vermelho forte de suas batidas. Que sangre vermelho negro de solidão. Sangue vermelho negro da escuridão de sua cela mínima, apertada. Sangre negro e rubro de aperto! Que desta solitária, não tenha nunca o contato com a claridade do Sol. Que viva em trevas, então, inimigo. E que morra em luz para que seus rancores possam lhe ver nu e imóvel, pedaço vil de carne.

E não volte a me incomodar enquanto tento dormir, coração.

sábado, 9 de outubro de 2010

Só o Sol

-por Otávio Silva


 

Guarda a chuva e guarda o Sol,

Guarda a sombra e guarda a nuvem.


 

Guarde a roupa, que vai esquentar.

Abaixe a guarda, que vai molhar.


 

Olha o guarda, que vai chegar,

Guarda baixa para não apanhar.


 

Pancadas de chuva,

Abraços de nuvens,


 

Só o Sol, só o Sol...

Só o Sol desfaz.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Analisando Jimi Hendrix



- por Camilla Lopes

Na manhã de 18 de setembro de 1970, Jimi Hendrix é encontrado em coma por sua namorada Monika Dannemann num quarto de hotel em Londres, e pronunciado morto assim que chegou ao hospital. Segundo o médico que o examinou inicialmente, o músico tinha se asfixiado em seu próprio vômito, composto principalmente de vinho tinto. Além disso, Monika alegou que Hendrix havia tomado naquela noite nove comprimidos de um remédio que ela usava para dormir. Quarenta anos depois, fãs e não fãs ainda tentam entender a mente brilhante e por vezes conturbada do considerado maior guitarrista de todos os tempos.
James Marshall Hendrix nasceu em 27 de novembro de 1942, em Seattle, EUA. Aos 13 anos já tocava em bandas, e sempre foi considerado pelos seus parceiros o mais tímido e reservado do grupo. Teve o auge de sua carreira a partir de 1966, quando foi para a Inglaterra e montou a Jimi Hendrix Experience. Pela grandiosidade de seu sucesso, é comum pensar que a carreira do músico foi longa, mas, três anos depois, Jimi já entrava em uma época pouco produtiva.
Embora em cima do palco se mostrasse o astro de rock que nenhum pai quer para sua filha, por volta de 1969 Hendrix questionava se era levado a sério por outros músicos, e dizia que não queria mais ser palhaço. Ele não estava satisfeito com sua música e começou a ficar deprimido. Trocava de bandas frequentemente, se drogava, saia do palco no meio do show dizendo “não estamos acertando”.
Eric Burdon, um dos músicos da Band of Gypsies, última banda com a qual Jimi tocou, disse: “Hendrix estava em um poço tão profundo que o único jeito de sair era parar de tocar e tentar arrumar a bagunça. Mas ele sabia que, sem a música, ficaria destruído de qualquer forma. Percebeu que a única coisa que tinha a fazer era continuar tocando e mesmo assim morreu, porque estava sendo tolhido criativamente”. Era um beco sem saída.
Para alguns, Hendrix era apenas mais um astro talentoso e perturbado que entrou no mundo do “sex, drugs and rock n’ roll” e saiu dele com uma overdose de heroína e calmantes. A heroína, na verdade, não estava envolvida em sua morte, apesar deste ter sido o primeiro relato nos Estados Unidos. Para outros, foi um artista complexo e idolatrado, e morreu porque sua genialidade lhe fugiu do controle a ponto de precisar de medicamentos para dormir, ou então porque “decidiu ir embora quando que quis”, como disse Burdon.
Seja como for, uma verdade é universal: Jimi Hendrix está mais próximo de nossa realidade do que a distância entre leitor e revista, ou telespectador e televisão. Seus receios em relação à sua imagem, sua insatisfação muitas vezes consigo mesmo, sua timidez disfarçada e a sobrecarga de pensamentos são características com as quais a maioria de nós – se não todos nós – pode se identificar e, portanto, não pode julgar. Se Jimi Hendrix morreu pelo seu excesso de criatividade e brilhantismo, foi uma morte triste e talvez desnecessária, mas inegavelmente digna.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Luas Cheias

-por Otávio Silva


Atraem os males

E traem os mares

Vazias e cheias

Línguas crescentes

Doces minguantes

Nova idade!

Sorrisos amarelos

Cedo no horizonte

Azuis dos mares

Cinzas da lua

Persigo-vos com meus sóis:

Sóis minha, sóis teus,

Soeis minhas, sóis vossos.

sábado, 28 de agosto de 2010

Horário Político Gratuito

-Otávio Silva


 

    "Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada com uma cuia de esmola e uma viola na mão. O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas e cantou essa música, que contava uma história que era mais ou menos assim..." (Raul Seixas)

    Eu e meu filho paramos para ouvi-lo também:

    Durante anos, trabalhei em uma escola. Varri os corredores, limpei as salas, virei os sacos de lixo. Desgrudei chicletes e descobri colas debaixo das mesas, arrumei o cenário de diversas apresentações, guardei coisas que os alunos esqueciam. Fiz de tudo.

    Algumas pessoas ali significam muito pra mim até hoje, mas a maioria dos que por ali passavam nunca souberam que eu sequer existi. Passavam por mim como quem passava pela porta de uma sala. Olhavam pra mim com aquele olhar de metrô, sabem? – dizia ele, representando todo ato daqueles dizeres - Aquele olhar que espera ser notado para imediatamente ser desviado. Era triste. Das que tiveram alguma importância em minha vida, guardo principalmente, uma professora de História do oitavo ano. Ou melhor, certa fala em determinada aula dela.

    Era começo de ano, provavelmente, uma daquelas apresentações que os professores faziam aos alunos novos todo ano. Eu, no corredor largo do segundo andar do prédio da escola, parara sob o sol quente - cujos raios ainda inclinados pela manhã ultrapassavam a moldura da vidraça escancarada - como é característico da época do carnaval, que, mal as aulas haviam começado, já se aproximava.

    Parei para descansar um minutinho. Apoiei um dos cotovelos no parapeito da janela e a mão na ponta seca da vassoura. Com o outro braço, secava os pingos de suor que escorregavam do cabelo para a testa e eventualmente para os olhos, o que já atrapalhava o meu serviço. Virando-me para uma das salas do corredor, a porta entre aberta me permitiu ouvir um pouco da apresentação da professora que me marcou até hoje.

    Ela apresentava sua matéria: povos distantes, em épocas longínquas; sua programação: duas provas durante o semestre... Era incrível a lembrança daquele velhinho. Contava a pontuação das provas, o horário das aulas. Com toda certeza, lembrava-se muito mais agora que os alunos quando deveriam. Disse ela também que muitas vezes se afastaria do conteúdo em si para falar sobre a atualidade, o mundo, e, sobretudo, sobre a Política.

    E aí o que, então, me marcou tanto: disse ela que Política é escolha. Todo tipo de escolha. Neste momento, meu interesse sobre a aula já havia sido notado, e a porta se fechara. Assim como um aluno que tivesse ficado para recuperação, eu não entendi no momento o que ela queria falar. Mas durante anos eu não só carreguei a frase comigo, como também deixei que a frase me carregasse. Hoje eu posso compreender o que ela disse e é isso o que tento dizer pra vocês, jovens que pararam para escutar esse velho de barbas já brancas.

    Os olhinhos do velho brilhavam com o crescente número de pessoas que parava em volta dele para ouvir algumas palavras. De certo, sentia-se agora o mestre diante de uma classe toda interessada.

    Política é escolha, meus jovens. Toda escolha. Você vota naquele que você escolhe para governar o seu país, mas não só! E
indicava o dedo torto, cumprido e cheio de veias da idade, como sinal de atenção. O seu governante escolhe o que vai ser do seu país, como representação do que vocês escolheram para ele fazer! Política é escolha, como a escolha que vocês fizeram de parar para ouvir um velho na rua. Mesmo tendo bastante gente aqui, a maioria passou reto, como sempre. Política é escolha, quando vocês decidem, debaixo do oceano de opções que tem, o que vão estudar e com o que vão trabalhar! Política é escolha quando você opta por gastar maior parte da grana do mês para a escola do seu filho ou para viajar com a mulher nas férias, quando você e sua mulher preferem não terem filhos para curtirem a vida. É escolha quando você tenta sair da casa dos pais pra viver sozinho. E ele criava um exemplo diferente pra cada pessoa que ali o escutava, para o homem de terno e gravata, para a mulher gorda de vestido, para a senhora bem arrumada de chapéu, para o casal de adolescentes tomando um picolé, para o turista com máquina fotográfica no pescoço, para o cara gordo com bigode também... É escolha quando você prefere contratar uma pessoa pra sua empresa pela origem ou cor dela e não sua capacidade profissional... Olhou pra mim e para o meu menino com atenção diferente. Eu me mostrava muito interessado durante toda a conversa, enquanto meu garoto puxava-me a fim de me distrair a todo instante para irmos embora logo. E o velho olhou fixo nele. Ele deve ter percebido que o guri não se interessou muito por aquele papo. O pequeno apertou minha mão com força, puxou minhas calças com medo e tentava se esconder atrás de minhas pernas, enquanto aquele dedo velho diminuía a distância dele.

    Senti os olhos já cinzas do velho, por detrás dos cabelos e da barba longos e brancos, atravessarem minhas pernas em direção aos olhos do meu filho, e o homem terminou seu discurso da seguinte maneira:

    -Política é escolha, moleque, quando você escolhe a roupa que vai sair hoje. E assim como na sua casa, se você não escolhe e seus pais são quem escolhem a sua roupinha, se você não quiser escolher alguém para te representar, alguém vai escolher por você. E com certeza, não serão seus papais.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Nostalgie


- por Camilla Lopes

No fundo da sua alma, esperava um acontecimento. Como marujos em perigo, seus olhos desesperados sondavam as solidões da vida a que fora destinada, procurando na distância alguma vela branca, nas brumas do horizonte. Esse acontecimento era uma incógnita. Todas as manhãs, ao despertar, tinha a impressão de que ele ocorreria no transcorrer daquele dia. Ouvia todos os ruídos, erguia-se em sobressalto, espantada de que o acontecimento não chegasse. Ao pôr do sol, sempre mais triste, desejava que o dia seguinte não tardasse. – Madame Bovary

O próprio Gustave Flaubert, autor do livro, certa vez confessou: “Emma Bovary c’est moi”. Eu ousaria ir mais fundo: todos somos. Quem nunca ficou aflito de ansiedade para algo acontecer em sua vida mesmo quando tudo estava em seu devido lugar que atire a primeira pedra. Talvez o problema seja exatamente tudo estar em seu lugar. Ok, eu devo estar falando o óbvio. A felicidade não está no objetivo alcançado, mas no caminho percorrido, certo? Certo. O real problema, acho, é quando começamos a pensar em coisas que aconteceram e que gostaríamos que acontecessem de novo, ou então que idealizamos e não se concretizaram do jeito esperado. Às vezes até mesmo o que queremos dizer acaba perdendo o contexto e ficando para trás. Pela atual estabilidade, acabamos perdidos nas lembranças - tanto do que foi, quanto do que teria sido -, as quais pouco a pouco se apagam. “Os detalhes se enevoaram, mas a saudade ficou”. É, queridos. Ninguém vive cada dia como se fosse o último.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Solilóquio

-por Otávio Silva


 

-Ninguém vai ouvir você. Ou pelo menos não porque realmente quer. Ah, já lhe ouviram? Tudo bem, foi só para esperarem a vez de falar. Olha, se você quiser que alguém lhe ouça, contrate um psicólogo, psiquiatra, terapeuta, ou coisa do gênero. É verdade. As pessoas gostam é de falar! Falam de si mesmas, falam de você, falam dos outros, falam de mim... "Falem bem, falem mal..."? Ah, isso não funciona pra mim, sério. Peço para que, por favor, não falem de mim. A opinião dos outros não me importa. Nem um pouco. Eu falo dos outros? Claro que não. Se eu vejo alguém diferente na rua? Ah... Talvez eu guarde pra mim. Pensar também é falar? Bom, é falar consigo mesmo, não é? Isso também conta? Bobagem! Poxa, mas se mostrar pros outros é muito difícil, deixar máscaras e personagens, espinhos e armaduras é ruim, muitas vezes. Aceitar meus próprios defeitos? Que defeitos, tá doido? Tá bom, todos nós temos defeitos. Mas eu não quero que os outros saibam dos meus!

    -Deixar a vaidade e a auto-estima de lado e aceitar os seus próprios defeitos e falhas são os primeiros passos pra começar a aceitar os defeitos dos outros, e com isso, se livrar de camadas de orgulho, inveja, parar de alto estimar os outros e reparar mais no próprio umbigo.

    -Pronto, já falou? Posso falar agora? Escute, se quiser ser escutado, procure um papel e uma caneta. Eles são os únicos que vão te escutar sem esperar a vez de falar, eu não.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Frère Jacques

-por Otávio Silva


Há quanto tempo você não dorme?

Você dorme?

Eu digo: você realmente dorme?

Você consegue passar uma madrugada inteira na cama sem se levantar pra nada antes do necessário?

Será?


Será que não tem uma torneira aberta?


Será que não tem uma porta aberta?


Feche-as, pois entra vento pelas portas e a água da torneira corre bem rápida!

E você não vai nem querer ver o estrago na sua conta no final do mês.


Será que você vai conseguir pagá-la?

Ainda tem todas as outras também.


Será que todos estão bem?

Fique tranqüilo: notícia ruim corre rápido e se acontecer algo com alguém que não está por perto, você não vai poder fazer nada mesmo.


Será que é dor de barriga?

Ou de garganta? Ou de cabeça?


Será que sua consciência pesa escondida no travesseiro?

Será que todos vão descobrir?
Descobrir o quê?

Que você não consegue dormir.


Frère Jacques

Frère Jacques

Dormez-vous?

Dormez-vous?


Sonnez les matines,

Sonnez les matines.

Ding, ding, dong.

Ding, ding, dong.

sábado, 7 de agosto de 2010

Happiness is Only Real When Shared

-por Otávio Silva


 

    -Que felicidade! Eu não poderia estar mais feliz!

    -Isto é óbvio.

    -Jura?! Está tão na cara? Deve estar escrito na minha testa, não é?

    -Não, na sua cara só os mesmos óculos tortos e as espinhas de sempre. E na testa, algumas rugas novas, pra falar a verdade.

    -Poxa! Não precisava me lembrar dessas coisas. Mas por que raios você disse que é óbvio eu não poder estar mais feliz?

    -Porque isto é impossível.

    -Ahn?!

    -Felicidade é só um sentimento. Não dá pra medir sentimentos.

    -Claro que dá!

    -Em qual escala? Metros, quilogramas? Graus centígrados, talvez?

    -Em nenhuma destas, oras! Mede-se pelo número de sorrisos na cara por dia.

    -Ah, deixa de besteira! E os sorrisos amarelos, entram na conta?

    -Ah... Estes não contam...

    -Não faz sentido. Os sentimentos são abstrações ideais e subjetivas dos seres humanos: nenhum tipo de objetivação seria capaz de calculá-los.

    -Então somos todos felizes iguais?

    -Não. Claro que não. Pessoas são felizes ou não, simplesmente. E mais: "feliz" foi só o nome que alguém inventou pra descrever sua própria abstração. Portanto, se você pensa que sente a mesma coisa que esse alguém, chame-se de "feliz"; se não, não.

    -E o que é que significa "ser feliz", então?

    -Pelo nosso queridíssimo amigo dicionário, felizes são aqueles que se sentem satisfeitos e contentes. E vai de cada um se sentir feliz com o que for.

-Ah, mas que mediocridade! Pensamento pequeno, amigo!

-Este é o problema: ultimamente as pessoas querem ter sempre mais e mais e nunca se contentam: o carro mais rápido, o celular menor, o tênis da moda; nunca se sentem satisfeitos: querem ser o vencedor, o número 1, nota 10, sucesso sempre... Nada é o suficiente.

    -É isso aí! O segundo lugar é o primeiro dos perdedores.

    -Então tá. Vá ser o primeiro colocado e vencedor sozinho enquanto eu vivo em festa com os perdedores.

    

terça-feira, 3 de agosto de 2010

“Isto é só um lugar e não um destino.”

-por Otávio Silva


 

O mundo dá voltas

E nós damos voltas no mundo

O que hoje é aqui

Amanhã lá será

Junto com o ontem que passou já.


 

O tempo é independente

De você, das suas obrigações

Dos seus problemas e felicidades

Ele não pára nunca

Por mais que você queira


 

Por mais que você corra,

Sempre vai ficar pra trás.


 

Por mais que você aproveite cada segundo,

Cada mísero segundo é cruel.


 

Passa, deixa seu rastro invisível

E vai embora

Para nunca mais voltar

Pra você nunca mais encontrá-lo.


 

Não pare no tempo.

Ele não vai parar em você.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Bobeira

-por Otávio Silva


Autocontrole. Como o próprio nome diz, é o controle de algo por si mesmo; a condução autônoma de seus próprios recursos. Vai de desencontro com aqueles que se defendem a administração da vida de acordo com os instintos e emoções, pois o autocontrole é, de forma sucinta, a prevalência da razão sobre a emoção. Mas, sobretudo, de uma razão filosófica e moral.

O homem é chamado de ser humano por carregar consigo duas partes que compõem sua essência: a do SER, que se refere ao corpo, ao biológico, instintivo e a HUMANA, que diz respeito à mente, à alma, à intuição. Esta parte, claramente, se responsabiliza pelo conhecimento e compreensão das coisas. Enquanto a primeira carrega os sentidos de forma mais primitiva possível: visão, audição, olfato, tato e paladar, que podem se relacionar de forma independente da razão pelas sensações: fome, sede, frio, quente, enfim, paixões outras que interferem demais no comportamento do homem contemporâneo.

Interfere no modo em que pessoas de uma maneira geral se deixam levar por sentimentos passageiros sem perceber o que os levam a tal ponto. Ou seja, as pessoas são controladas e submetidas a regimes de hierarquias corrompidas ou artificiais, sem ter noção disto. E essa verticalização forçada é resultante justamente dessa preferência humana por seu lado animal: os empregados são controlados por seus patrões, pois dependem do dinheiro que estes lhes oferecem para que possam ter o que comer, sem questionar se tal emprego é justamente aquilo que querem ou o que tem vocação para exercer.

Além disso, o autocontrole nos ajuda a alcançar objetivos e explorar vocações. Entre o prazer imediato e hedonista e o sucesso e a construção de felicidade, há uma grande distância. Para aquele, não se precisa de muito esforço e a realização é vazia e sem significado, abrindo espaço, inclusive, para ações de má-fé para com outros e buscas rápidas e oportunas de conseguir o que se quer. Já para o sucesso, é necessário uma motivação e um esforço que são mantidos pelo foco e pela concentração que o autocontrole traz, no sentido de deixar de lado prazeres insignificantes em busca de algo maior, mas conquistado apenas em longo prazo.

Eis que a filosofia moral se faz importante. As coisas de bem são de bem não porque Deus ou alguém nos diz que são. Justamente por serem boas, que as coisas boas são aconselhadas. Por isso, parece que nos é intrínseco distinguir o bem do mal, o certo do errado. Assim, se todos conseguíssemos deixar nossos vícios emocionais animalescos como a ganância, o ódio, a presunção de lado, poderíamos até quem sabe viver numa anarquia, em que todos seriam controlados pela própria razão e honestidade...

Chegando ao final do meu texto, este me parece mais um conto de fadas do que qualquer outra coisa. Como a anarquia até hoje nunca existiu e é tratada como algo impossível ou utópico...


"Pode avisar, podem avisar:

Invente uma doença que me
Deixe em casa pra sonhar!

[...]

Me deixa que hoje eu to de
Bobeira, bobeira

[...]

...Hoje eu desafio o mundo
Sem sair da minha casa.
Hoje eu sou um homem mais sincero
E mais justo comigo"

Me Deixa

O Rappa

(Composição: Marcelo Yuka)

domingo, 25 de julho de 2010

Minha Culpa

-por Otávio Silva


 

A culpa é relacionada à responsabilidade, ao erro, ao fracasso. Outras vezes, diz respeito ao pecaminoso ou imoral. Já ouvi dizer que a culpa é um saco! Um saco cheio de tijolos que se carrega sobre as costas e que não vale à pena carregar tal fardo ao longo da vida.

Acho que pra isso inventaram a 'desculpa', o perdão. O pedido e a concessão. Como um ato, ocasionalmente até divino, para livrar alguém daquele saco, num alívio.

Tijolos são utilizados para construírem algo. Se você deixar um saco com os seus por aí, como ficará sua obra?

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Palavramento

-por Otávio Silva


 

Dizem que uma imagem vale

Mais do que mil palavras

Heresia. Não é verdade.

Tente dizer isso sem uma única palavra.

...


 

Em contrapartida, um só conceito

E mais de mil imagens podem estar em formação

No seu pensamento

Através da imaginação


 

Ler e falar, escrever e ouvir

São sinônimos de pensar

Suas letras representam o refletir

Depois de se materializar

 

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Máquina de Fazer Vilão

-por Otávio Silva


 

    A frustração é como uma promessa não cumprida. Deixa-te na mão. É como o sangue que saiu do coração em direção ao corpo com a promessa de voltar, mas não voltou. É como a percepção no último dia das tão esperadas férias que elas não foram aproveitadas. Não tem para onde fugir. Não tem para onde correr. No final, somos só nós dois: eu e você, frustração. De mãos dadas. Olhos nos olhos. Boca na boca. Sinto-lhe inteira sobre mim, mesmo antes de me tocar. Flutuante no ar, literalmente. Expande-se no ar, como um gás exotérmico, liberando seu calor para todo o ambiente. Banha o quarto. E me afoga. Lentamente. Muito. Muito lentamente. Como se a cada instante de tempo, o espaço no relógio não acompanhasse. Afoga... Sufoca... Mas se esquece de me matar. Tortura as minhas lembranças. Ataca aos meus desejos. Sem dó, nem pena, coração ou compaixão, nem nada. É pior que o arrependimento e que a saudade. É a sensação de que fez tudo que podia e não conseguiu. É o sentimento de falta daquilo que nunca teve. A ideia de que não mudaria nada se tivesse a oportunidade de fazer de novo. E do mesmo modo como me deixou a um fio dos objetivos, me deixa a um fio da morte agora, a um fio de cabelo de um beijo. E ela fica aqui, bem a minha frente, todos os dias, os dias todos. Não me pede perdão, não me deixa e não se apaga...

    O melhor remédio? Vingança. Frustre a frustração...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Tempestade em Copos de Água e Café

-por Otávio Silva


Casaram-se lá pro mês de outubro do ano passado, na primavera. Depois de cinco anos namorando, era tempo já. Terminaram a faculdade, arrumaram emprego. Ela não agüentava mais a pressão da família pra saber quando seria o casório, além de estar curiosa e ansiosa pra conhecer o 'mundo de casado'. Ele estava cansado de brincar com a vida, queria assumir perante toda a sociedade uma vida séria, se desvencilhar do cordão umbilical da mãe e do dinheiro do pai, de uma vez por todas. Ambos se decepcionaram.

Mal chegamos a maio e tive de recebê-los em meu escritório. Trabalho como advogado civil em casos de família e, semana passada, eles me procuraram para entrar com pedido de separação e divórcio. Como instruído nos anos de faculdade, indaguei-os sobre os motivos que os traziam até mim para uma tentativa de reconciliação ou acordo. E bem, eu aconselharia os jovens formandos e aspirantes à profissão, de não tentarem isso. Ou senão, terão que colocar um divã no meio do seu escritório...

Sentido-os um pouco nervosos, servi-lhes dois copos cheios de água para se acalmarem. Nenhum dos dois sequer tocou seu próprio copo. Sentei-me na ponta da mesa, como se estivesse entre eles. O lábio inferior dela era constantemente atacado pelos dentes. Ele, apesar do ar frio e calmo, não conseguia abrir as sobrancelhas, nem direcionar os olhos a um lugar só.

O clima na sala não era tenso. Era enevoado por pólvora e foi só eu iniciar as primeiras palavras, para os dois começarem a explodir seus sentimentos e emoções que ainda nutriam um pelo outro. Acusações, reclamações, reivindicações, uma série de ações que impressionantemente nos levou ao primeiro dia de cônjuges morando sob o mesmo teto.

Após ele conseguir um belo e estável emprego, se casaram na mesma igrejinha que os pais dela. Após viajarem por quase três semanas por quase a Europa inteira em uma maravilhosa lua-de-mel, compraram uma casinha, com a ajuda da família e amigos, para morarem juntos. E depois de toda bagunça e da mudança, lá se foram eles. Como relatado por ela e confirmado, por vezes até complementado, por ele, o primeiro dia transcorreu da seguinte maneira, que eu penso que resume bem o relacionamento em questão como um todo e muitos outros...

Acordaram juntos de manhã, se demoraram um pouco na cama. Ela foi tomar banho enquanto ele tinha seus cinco minutinhos mais. Quando ela saiu do banheiro, ele entrou. Como era o primeiro dia deles morando juntos, ela resolveu colocar a toalha de linho branca que sua mãe dera para eles como presente de casamento. Assim como era tradição da família dela, as mulheres se casarem naquela igrejinha de bairro, era também a mãe dar uma toalha de linho branca quando a filha se casasse.

Ela, que nunca fizera nenhuma tarefa doméstica em sua casa e jurara de pés juntos para a família inteira durante toda adolescência que não as faria para marido nenhum, agora já tinha posto a mesa e preparado o café. E ele se juntou a ela, sentando ao seu lado, selando-lhe um beijo e amarrando a gravata, ao mesmo tempo. Olhou no relógio e descobriu-se mais atrasado do que pensara e por isso, ignorou os pães, frutas, frios e tudo que havia na mesa, colocando apenas um pouco de café na xícara. Já levantando-se e despedindo-se da querida esposa para ir trabalhar e ganhar dinheiro para a casa, ele deixou cair algumas gotas em sua camisa que vestia e na toalha.

Eu agora me sentia um celibatário ouvindo-a confessar sentir-se nervosíssima com tudo aquilo, para a surpresa do seu ainda marido. Os dois concordaram que naquele dia, ela não demonstrou nenhuma irritação. E ela defendeu-se dizendo que querendo ser uma boa esposa e a fim de não começar a desgastar a relação, relevou aquilo tudo e se propôs imediatamente a lavar a camisa e a toalha de mesa.

E enquanto eles falavam e desabafavam, os copos deles iam se esvaziando gradativamente. Centímetro a centímetro, de vagarosamente, sem eu perceber.

Bom, ele trocou a camisa, e foi trabalhar. E ela, ficou em casa. A toalha de linho ficou manchada e apesar de sua dificuldade em manusear os aparelhos todos de limpeza, secagem e passagem da camisa, esta não ficou com a mancha do café e então, foi devolvê-la ao guarda-roupa do marido, quando se deparou com a toalha de banho dele molhada e jogada em cima da cama. Confessou-me novamente a sua revolta, mas novamente, diante da surpresa dele no escritório, admitiu ter engolido seu sentimento, relevado mais uma vez o fato e ter simplesmente, devolvido a toalha a seu devido lugar.

Neste momento, sem eu ao menos notar ela fazer alguma pausa para as goladas, vi o copo dela praticamente vazio. Restava pouco para acabar quando o esposo, que apenas completava as falas dela, talvez por sentir-se vítima diante do já exposto e decidiu tornar-se primeira pessoa da história.

Na volta do trabalho, o marido, já cansado e faminto, fez-se de bom moço, e engoliu saliva para matar a fome, enquanto juntou-se à sua querida esposa no sofá da sala em frente à TV, por algum tempo. Após namorarem e se curtirem um pouco, foram à mesa, onde ela serviu um bife à parmegiana, que tentara aprender naquela tarde telefonando para a sogra. Ao experimentá-lo, para o susto dela, disse ter perguntado a si mesmo se fora banhado em água do mar, de tão salgado. Mas não fez menção nenhuma ao desgostoso sabor da comida, para não desencorajá-la na cozinha ou magoá-la.

Engraçado como notei que depois que ele falou, o copo dele havia esvaziado um pouco. E continuou...

Chegando ao armário, uma camisa no meio das outras o chamou atenção. Tinha uma marca de ferro de passar. Bem de leve, quase imperceptível talvez para alguém que não a usaria. Mas não para ele. Mas não pra ela, ele reclamou ou chiou. Simplesmente, não a usou mais. Relevou. Engoliu. Eu só não o vi engolir nada de água e para a minha admiração, seu copo já estava quase vazio.

Este primeiro dia retratado por eles foi parecido com o quarto, e também com o décimo. O vigésimo teve algo disso novamente e eu não sabia quando nem como pedir para eles pararem. Não sabia mais o que fazer. Não sabia se ali era o lugar para aquilo e ao mesmo tempo, sentia pena daqueles dois. Era óbvio o quanto eles ainda se gostavam desabafando todas as lembranças e sentimentos.

Não sabia por aonde ir. Sou advogado, não psicólogo ou conselheiro amoroso. Dizem que a justiça é cega, e o amor também. Às vezes, procuramos a melhor coisa a se fazer sem olhar a quem, pela justiça. E em outras, procuramos a melhor pessoa pra fazer o impossível, por amor. Quem é cego, não olha. Quem não olha, não vê. Quem não vê, não assiste. Quem não assiste, não atende. E atender é justamente aquilo que as pessoas procuram umas nas outras. Seja em contratos que atendam às necessidades comerciais de uma empresa, ou em compromissos amorosos que atendam às necessidades emotivas e carnais de cada um. E quem não vê, pelos outros sentidos consegue reconhecer algo, porque reconhecer é saber que é o objeto, mas não o conhece, pois conhecer é saber como ele é e sem um dos sentidos já se tem essa percepção afetada.

E assim, o que fiz foi encaminhá-los a um terapeuta amigo meu, da época de colégio pra ver se conseguiam fazer esvaziar a paciência deles, até a última gota. Seja de café, ou de água.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Only When I Sleep

- por Camilla Lopes

Os seus ombros se esbarraram logo na escada rolante que descia para a plataforma do metrô. Foi quando instantaneamente notaram um a presença do outro. Não a presença física, porque isso era quase impossível não notar, com toda aquela gente se empurrando, lutando por um lugar mais próximo da porta do vagão. Era um tipo de presença que destacava no meio da multidão a camisa xadrez azul e preta que ela estava vestindo, de um jeito que ele não conseguia deixar de repousar o olhar sobre ela. E ela, antes distraída com a música que saia de seus fones de ouvido, passava a ritmar os passos dele de acordo com a melodia. Os dois pararam lado a lado na plataforma, talvez propositalmente. E quando o primeiro trem chegou, ambos foram empurrados para dentro do vagão. Ele acabou de costas para a porta de entrada, e ela logo atrás, tão próxima que podia encostar a ponta de seu nariz na nuca dele. O perfume era tentador de mais, o que chamou sua atenção, pois raramente gostava tanto assim de uma fragrância. Ele, sem conseguir vê-la, se perguntava em que lugar ela poderia estar. Resolveu, então, virar discretamente, analisando as pessoas em volta como quem não quer nada, procurando o tal xadrez azul e preto. Completada a volta, ele se encontrou de frente a ela, e não teve como evitar a troca de olhares. Os olhos dele eram pretos, fundos, e ela queria saber o que se passava por trás deles. Ele se impressionou com os olhos verdes dela, passavam um ar de inocência indescritível. Ela não conseguiria se mexer, nem se quisesse. E eles estavam tão perto. Perto o suficiente para parecer que só existiam os dois naquele trem, não tão perto para que eles não desejassem ser um pouco mais empurrados pela multidão, se aproximarem mais. E se ela fosse embora na próxima estação? Ele nunca mais a veria? Isso não parecia uma opção. Ela tocou na mão dele, tentando parecer acidental. Precisava sentir a sua pele, era como se algo nele a estivesse atraindo. Começou a fantasiar cenas em sua cabeça de acordo, novamente, com o som que tocava em seus ouvidos. Será que ele também estava pensando algo do tipo? Ou ela era só uma menina boba que pensava em coisas que não aconteciam na vida real? Mas o coração dele bateu três vezes mais forte. Ela estava perto o bastante para perceber isso. Bom, sua respiração ofegante ele não conseguia mais esconder. Nem ela. Ainda com os olhos fixos um no outro, eles começaram a aproximar seus rostos, quase involuntariamente. E como num alívio, seus lábios se tocaram.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Mesmo

-por Otávio Silva


 

Ela queria mudar o mundo

Ser alguém

Sair da mesmice,

Erradicar a fome

Acabar com as guerras e corrupção

Fora Sarney, Dunga, Galvão

Cara pintada, nariz de palhaça

Agora e sempre...


 

Nem sempre.

Em uma época, ela chorou, gritou, sorriu...

Esperneou, gemeu, perdeu o sono...

Por ele.

Ele que era um ninguém, mergulhado no sistema

E ainda vivia num esquema muito bom

Absorto na alienação:

Escola, cinema,

Clube, televisão.


 

E hoje ela deixou tudo de lado

Por eles.

Eles que eram tão iguais, mesmo que ninguém achasse

Mesma comida preferida, mesma cor do sorriso,

Mesmo sabor do beijo, mesma sobrancelha levantada

Mesmo amantes, mesmo!

Era.

Mônica tenta viver a vide deles

Ouve as músicas deles, curte os filhos deles

Assiste aos filmes deles, lê as cartas de adolescentes deles

Para que o "nós" deles possa viver para sempre

Mesmo...

Com a morte de Eduardo.

domingo, 4 de julho de 2010

Instável Relação

-por Otávio Silva


Não se dão bem,

Um ao outro se sufocam.

Enquanto ele não vem,

É com ela que os homens se deitam.


Porém, pessoas de qualquer idade

Perturbadas são

Desde o início da humanidade

Pelos frutos dessa relação,


Que ocupam nossa mente.

São creditados às vitórias;

Não raramente

Movem os cursos de nossas histórias.


Essa família tem muita vaidade,

Querem nossa atenção noturna.

De carneiros, o pai tem a cumplicidade,

Para se livrar dessa esposa soturna.


Alguns precisam do apoio marital

Outros carecem de uma visita dela

Não se trata de opção sexual

Mas os filhos tornam sua vida bela


A faculdade de pensar antes de dormir, é a maior inimiga do sono. Ao mesmo tempo, é da união destes oponentes que nascem os sonhos.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

...Numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar...

-por Otávio Silva


 

    Era sonhador. Apaixonava-se fácil, acreditava em amores da primeira até a última vista. Mas durante a semana, vestia a fantasia de trabalhador sério. Herdou dos pais um apertamento em São Paulo, daqueles "de porta pros fundos". Morava sozinho e prestava serviços a uma boa empresa de publicidade. Reclamava aos deuses, e aos orixás às vezes, quando seu chefe mandava-o entregar trabalhos para um dos grandes clientes na segunda-feira de manhã. Assim, não conseguia dar às suas receitas mensais o fim que elas mereciam: o fim da semana.

    Muito simpático, de sorriso fácil e de fácil abertura, chegava a todas as rodinhas em churrascos e bares com os amigos. Sorria sempre que conhecia alguém, pois acreditava que nunca teria uma segunda chance para causar uma boa impressão. Também por isso, vaidoso que era, habituou-se a usar os óculos de grau somente no ambiente laboral. Contrariava as sugestões oftalmológicas e nem na rua os usava. E andava muito na rua.

    Como herdara a moradia e o trabalho lhe rendia apenas os finais de semana, o transporte que usava era o público. Não tinha dinheiro para manter um carro. Logo, com o dinheiro da empresa, fazia duas baldeações no metrô e pegava mais um ônibus para ir ao escritório. Além de, um ônibus e, duas baldeações para voltar. Já decorara o caminho, não dependia mais de identificar os borrões e contornos das placas e indicações.

    Ele reclamava que a solidão o perseguia. Mas ele não percebeu que ele não deixava a solidão ir embora.

    Todos os dias, nosso personagem vai a pé de casa até o metrô. No mesmo horário. Todos os dias, ele passa na catraca, desce as escadas e espera o metrô chegar. Com uma margem de um ou dois minutos para mais ou para menos, o vagão chega à sua estação. Faz a baldeação na linha verde e segue em direção às estações da Av. Paulista. De lá, pega um ônibus que passa de dez em dez que desce a Bela Cintra, onde desce no terceiro ponto, imediatamente antes do posto de gasolina. Chega pontualmente, às 8h no seu trabalho. Todos os dias. Se o tempo está contra ele, ele deixa as calçadas e escadas pra trás em passos rápidos.

    Pacato trabalhador, morador solitário nunca se deu conta que milhares de pessoas fazem a mesma trajetória que ele. Em uma cidade como São Paulo, você anda num abismo de frieza e intimidação. Só de olhar pros lados, pode até cair. Do seu lado, passa todos os dias, uma linda moça dos cabelos dourados, que gosta dos mesmos filmes que ele. Um pouco mais apressado, alternando casacos marrons e pretos em dias de frio, e camisas coloridas no calor, um senhor de cabelos grisalhos trabalha em uma empresa concorrente a dele, e precisa de alguém justamente como ele. Sempre atrasado, corre um moleque que ouve todos os dias a discografia inteira daquela banda antiga que nem existe mais. No metrô, trabalha uma mulher que é prima de uma amiga de infância de sua mãe que morreu e não deixou nenhuma lembrança.

    Todos os dias, ele deixa escapar tantas oportunidades que nem poderia contar. Todos os dias ele divide o banco com um possível futuro chefe, dá passagem à possíveis mulheres de sua vida. Tudo isso por falta de um par de óculos. Nós buscamos, no nosso dia a dia, condições de nos encaixarmos na rodinha do churrasco do final de semana com pessoas que consideramos especiais. E deixamos de lado condições especiais de pessoas comuns que nos são apresentadas todos os dias. Ponha os óculos, de vez em quando.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

...Felicidade, Sim.

-por Otávio Silva


 

A luz do Sol atravessava minhas pálpebras e por isso eu acordei. Bom dia. Pelo menos o dia prometia ser bom. A noite anterior tinha sido péssima. Sem conseguir dormir, tive que ligar a TV até ficar cansado ao ponto de não conseguir continuar com os olhos abertos.

Ao tentar me levantar, o velho gato já gordo pesou como uma pedra no meu pé direito e só com o outro eu consegui sair daquela cama de casal, que parecia enorme demais agora. Por ele ter, em seguida, acordado, se assustado e tombado também, eu o perdoei. Invejei-o como sempre, por conseguir, como sempre, cair de pé. "É, esta cama está realmente grande demais para nós dois!" eu disse ao gato, abrindo um sorriso para a direita e me posicionando frente a ele, ironizando um duelo de filmes americanos de faroeste. Mas ele, como sempre, nem me respondeu.

Fui até a pia do banheiro da suíte para lavar o rosto e aqueles milhares de potes de cremes de diferentes tamanhos, cores, cheiros e sabores continuavam assombrando o meu banheiro. Já fazia mais de um mês... Eu não sabia o efeito exato de cada um, mas volta e meia me pegava lembrando a ordem que ela usava: primeiro o verde pequenininho para o corpo, antes do banho. Durante o enxágüe, duas vezes o azul redondo no cabelo, por intervalos de cinco minutos. Para o corpo, o marronzinho fininho e alto. Após o enxágüe... Ora, que diferença fazia lembrar isso tudo agora se ela não está mais aqui? Aliás, que diferença fez lembrar enquanto ela estava?

Resolvi naquela hora não fazer o cavanhaque pra me lembrar da época da escola em que eu contava vantagem dos outros moleques por ter meia dúzia de três ou quatro fios no queixo a mais do que eles. Isso, vou deixar o cavanhaque, tirar uma foto e... Ah, quem aqui quer contar vantagem agora? Hoje se encontrasse qualquer um, todos poderiam contar todo tipo de vantagem sobre mim. Fiz logo aquele cavanhaque ridículo.

Saído do banho, ainda no armário do closet que contornava o banheiro, escolhi a camisa listrada que minha mãe me dera de aniversário há uns anos atrás. Era uma camisa social preta com listrinhas brancas verticais, um pouco espaçadas umas das outras. Só a camisa mesmo. Continuei de samba canção e chinelo. Era melhor.

Peguei o jornal, que o faxineiro já deixara no tapete em frente ao meu apartamento. Tapete este, que sugeria já feliz demais pro meu gosto que os visitantes eram muito bem vindos aqui. Bom, depois eu resolveria isto. Voltei ao quarto, liguei o laptop em cima da escrivaninha e sentei na cama esperando-o ligar. Eu trabalhava em casa. Pela webcam, eu realizava assistência remota aos clientes de uma empresa de software de navegador de internet.Por um motivo muito simples, era de graça, eu usava o tal software no meu próprio computador. Mas nunca imaginaram que eu precisaria deste serviço um dia. Pois é, naquele dia, tive pena daqueles que eu atendia, ao ligar para a central de atendimentos da empresa.

Resumidamente, meus problemas de conexão e minha paciência foram dizimados lá para os meus protocolares quarenta minutos de desjejum. Logo, decidi que só começaria o trabalho após o almoço. Foi mais ou menos nessa época que eu me dei conta que as pessoas reclamam por coisas bobas. Mais desolador que as vinhetas da televisão de domingo a noite que lembram a volta ao batente no dia seguinte, mais triste que ficar em casa brigado com ela de sábado a tarde, e mais deprimente que estar cansado demais após o trabalho na sexta-feira para curtir, só almoçar todo santo dia sozinho e em casa.

Naquele dia, tinha o laptop como companhia. A minha área de trabalho, que mais parecia uma fachada de casa grande de uma senzala, com milhares de janelas enfileiradas, mostrava pra mim os fatos da semana na página online de outra empresa de jornal, as fotos do passado iluminadas no protetor de tela, os anúncios de montes de coisas que eu nunca pude comprar em pop-ups movimentados, e a minha previsão do futuro na página do horóscopo. Frente a esse caleidoscópio em meio a um mosaico de figuras, imagens e projeções do meu passado, do meu presente e do meu futuro, eu percebi que a vida é exatamente como a minha camisa que usava: listrada. Por mais que você tenha uma listra de felicidade, imediatamente, vem uma de tristeza. E assim como existe diferença entre camisas pretas listradas de branco e camisas brancas listradas de preto, a minha vida era triste, listrada de felicidade. Por mais longa que fosse a listra, sempre vinha a de tristeza e solidão.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Morno

-por Otávio Silva


 

Quem disse que eu quero ter sucesso?

Tudo que eu peço da vida

É que no pessoal

Ela seja bem sucedida

No mais, medíocre

Que seja!


 

Não serei o funcionário do mês

Nem o proletário da vez a ser promovido

Duvido que seja

Mas veja, não serei pior que ninguém

Nem melhor também, é verdade

Da vaidade, quero me libertar


 

Quero a atenção

Das flores que minha vó tem em casa

Rega todos os dias sem exceção

A televisão é diferente. Nunca sai da sua frente.

Quero poder errar. De vez em quando, atrasar

De vez em nunca, faltar no serviço.

Mas em casa não fazer isso


 

Quero uma mulher companheira

Pra ter ao menos um casal. Um quietinho

E outra bagunceira.

Quero dar broncas, cometer enganos

Falar e ouvir todos os dias

Quase sussurrando:
-Te Amo, te amo, te amo.

domingo, 20 de junho de 2010

02:02

- por Camilla Lopes

Ela estava novamente com uma folha em branco e uma caneta preta em suas mãos. Ao lado, sobre a mesa, estavam bolinhas de papel, as quais ela contava distraidamente. “Vinte e uma. Deus, vinte e uma tentativas”, dizia para si mesma. Ela havia escolhido fazer uma carta porque sempre teve mais facilidade com a palavra escrita do que com a falada, mas agora parecia que nem uma nem outra funcionavam. Tudo que ela escrevia parecia clichê, dramático, exagerado. O sentimento que sentia era exagerado, grande de mais para caber em seu peito, e ela odiava tudo isso. “Você não faz idéia do quanto eu gosto de você, mas me desculpe, não vejo jeito disso dar certo”, recomeçou. Mas por que raios ela estava pedindo desculpas? Não tinha feito nada de errado, ele tinha feito. Ele tinha estragado um dos sentimentos mais verdadeiros que ela já tinha sentido na vida. Mais uma folha se juntou às bolinhas amassadas. Ela respirou fundo, colocou uma música e tornou a refletir, olhando para fora da janela. Incrível como a inspiração surge apenas nas horas inapropriadas. “Droga.”, e voltou-se novamente para o papel: “Eu sou apaixonada por uma parte de você que eu não sei se existe”. Não, não estava bom. Vinte e três bolinhas de papel. “Não vejo por que continuar com isso se de um jeito ou de outro eu vou me machucar”. Não. Não, não, não. Aquilo parecia tão confuso. Um aglomerado de letras que não fazia sentido algum. Daqui a um tempo ela leria aquela carta novamente e se sentiria uma criança de doze anos de idade, idealizando, vivendo sozinha uma comédia romântica água com açúcar. As ideias e as conclusões estavam em sua cabeça, passavam por seus olhos deixando lágrimas, mas não chegavam até a ponta da caneta, e isso começou a desesperá-la. Então, encostou a cabeça na ponta da mesa, e deixou seus pensamentos fluírem à vontade por um momento, quase caindo no sono. Não custou muito tempo de mente livre para perceber o que realmente gostaria de escrever. Ela rasgou sua última folha de papel em um pequeno quadrado, e, de uma vez só, escreveu: “Não é que eu não queira ficar com você. É que eu quero não ficar com você”.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Mau Fim

-por Otávio Silva


Desejos egoístas

Promessas mentirosas

Eram tão minhas

Pensei serem nossas


Felicidade e amor,

Amor e esperança

Agora com a dor

Só ficou a lembrança


Dos segredos

Do meu mundo

Dos meus medos

Tão profundos


Não bastasse um só

Foram três

Dei um nó


Nos seus laços

Nos seus beijos

E abraços


Um só bastasse

Que para mim

Se concretizasse

De uma fita do Bonfim

terça-feira, 15 de junho de 2010

Conto de Fraldas

-por Otávio Silva


Eram, uma vez, um casal diferente. Eram. Agora já nem diferente são. Muito menos um casal. Aquela menina de franjinha por quem ele se apaixonou já deixou a franja crescer. E o garoto desleixado que a conquistou, hoje se arruma todo pra sair de casa todos os dias.

A vida deles pouco mudou: continuam batendo perna pra lá e pra cá, batendo cartão nos mesmos bares e restaurantes. Ele continua batendo uma bolinha com os amigos. Ela continua batendo papo no salão. Os corações continuam batendo. Será que o mesmo que antes? É provável que sim. É provável que por novas pessoas. Talvez por velhas pessoas. Quem sabe se pela saudade que ficou?

A mesma situação em épocas diferentes.

Ele fora pra ela a pessoa com quem ele hoje sonha encontrar. Enquanto ela encontra pessoas com quem já sonhara antes. Ela reclamava dele da mesma falta de tempo que ela tem tido. Eles eram distantes em brigas quando estavam juntos. Eram juntos em pensamento quando estavam separados.

Tinham dificuldades para se abrir. Ela era durona. Ele, timidão. Quando tentavam discutir a relação, o tempo se alongava e eles não se acertavam em nada. Quando não tentavam, ficavam sem se falar por semanas.

O orgulho os atrapalhava. Ele não corria atrás dela. Nem ela dele, enquanto que passavam os dias correndo atrás de seus ideais. Lágrimas duras em corações moles, tanto batem até que furam, rasgam, destróem e explodem.

Constantemente julgavam um e outro, constantemente usavam o pouco que falavam o outro contra o um. E por isso, foram condenados a viverem felizes para sempre, separados.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Platão Falou: “Take It Easy”

-por Otávio Silva

    

    O principal legado que Platão nos deixou foi o pensamento sobre o "mundo das ideias". Basicamente, o nome é quase auto-explicativo. Tudo que existe no real, isto é, o que você percebe pelos sentidos, existe também numa espécie de mundo paralelo, o das ideias. E nesse mundo, tudo existe de forma ideal. É daí, aliás, que vem o termo "amor platônico", como algo idealizado, utópico. Partindo disso, podemos passear por outros pensadores e conceitos...

    Em um primeiro momento, se tudo que existe no real existe também no ideal, e de modo perfeito, fica subentendido que isso que vivemos é uma cópia impura, falsa de um objeto idealizado.

    Dessa forma, podemos entender as críticas que Platão, como bom discípulo de Sócrates, fazia aos sofistas – aqueles filósofos que valorizavam as opiniões acerca das coisas dentro de certo contexto, como se estivessem todos ao redor de um aquário cheio de água, com uma moeda segurada por um fio quase que invisível. Em um de seus textos mais famosos, o Mito da Caverna, Platão caracteriza o sofismo como aqueles que vivem no mundo das sombras, que mais tarde, seriam clareadas pela lanterna dos iluministas.

    Seguindo nosso passeio, tomando como verdadeira, então, a existência das coisas em um mundo eterno e absoluto, sem contextualização, topamos com a metafísica. Isto é, a crença em um plano "além do físico", ou seja, tiradas de corpo, de contexto, consideradas por si mesmas, em si mesmas e para si mesmas. Metafísica esta que, anos depois, Kant classificou como "a arena das discussões sem fim", no português claro: não existe.

    Ele é percebido por todos os sentidos pelos que acreditam, mas para os não-crentes, Deus é um ente metafísico. Bom, controvérsias e discussões religiosas a parte, continuemos: a Bíblia diz que o homem foi criado à "imagem e semelhança" d'Ele. E que Ele vive no "Reino dos Céus" etc... Podemos dizer então que o homem é a imagem falsa, à qual nos referimos antes, de Deus. Em nome do Pai, do Platão e do Espírito Santo, Amém.

    Além de dar base para a crença monoteísta, de maneira geral, Platão inaugura o pensamento subjetivo individualista judaico-cristão que permeia o mundo Ocidental de hoje. Isto, pois sendo o homem real incluído no contexto histórico e cultural, seja qual for o que ele está inserido, é ele a parte maculada dessa história. Melhor, então, descontextualizarmos, desapegarmos da vida que levamos. A ideia coletiva da polis grega que defendia a inclusão dos cidadãos cai por terra para dar lugar à valoração máxima do "eu" em prejuízo da sociedade. Por isso, é tão notada uma tão vulgarizada crítica à vida em sociedade. Vemos que no Oriente, explícito em homens-bombas e tradições religiosas obedecidas ortodoxamente, que o indivíduo ainda se faz menor que o grupo.

    Tomando de assalto a caverna dos sofistas de lanterninha no capacete e o caramba, Rousseau abraça a ideia de Platão. Mas por circunstâncias históricas, foge de defender Deus em sua Cruzada às avessas. O homem ideal, então, foi o famoso "bom selvagem", que longe da sociedade viveu em paz com a Natureza. Porém, como o próprio filósofo francês nos ajudou a lembrar, todo tipo de relacionamento é sociedade, em um sentido amplo. E, mesmo no estrito, sociedade é uma organização de pessoas com a mesma finalidade. Bom, família, então, é a menor e mais antiga forma de sociedade existente. E até hoje eu não conheço algum ser humano que tenha sobrevivido sem a ajuda, se não de pais biológicos, de pessoas que o mantiveram guardado, alimentado e protegido durante muitos anos. Portanto, o "bom selvagem", ao qual tanto nos orgulhamos de sermos descendentes, pelo menos no mundo real e físico, não existiu.

    Ainda assim, a decepção não impede o final do passeio. Este homem selvagem, bom, divino, imortal, eterno, absoluto, em comparação com o homem real (sem muita caracterização, para não ficarmos tristes) é descontextualizado, é solitário, sem sociedade. De acordo com o Prof. Charles Lindblom, em seu livro Política e Mercado (o qual eu não li, só estou divulgando a fonte) conceitua a vida em sociedade, a qual nós fazemos parte, como sustentada por três pilares: autoridade, troca e persuasão. E concordo com ele: a economia e a política, bases de uma vida social, dependem desses três pontos e ficam evidentes, logo, os motivos pelos quais somos corrompidos.

    Transcendental e mundano; eterno e mortal; ideal e real; objeto e imagem etc. Pronto, voltamos ao século "Xalguma coisa...", voltamos à divisão maniqueísta do mundo. Será que é assim mesmo e ponto?

    Consultando Platão, em seu texto O Banquete, ele narra um banquete (durd) em que vários gregos bebem e discursam todos sobre o amor, elogiando-o e tratando-o como um Deus. Eis que chega a vez de Sócrates falar, e contando a história em que se encontra com uma sacerdotisa grega, esta lhe conta a origem do amor de maneira maravilhosa, que perdendo toda poesia, resumirei tentando responder à questão acima.

    O Amor teria surgido da união de Recurso (=ato de recorrer, apelação judicial), deus filho de Prudência, com a Pobreza, reles mortal. E dessa união, o amor nasceu pobre e feio, sem lar, aspirante à riqueza e à beleza, devido à sua origem materna, e ao mesmo tempo, corajoso, decidido, enérgico, pois também puxou o pai. E dessa forma, o amor enriquece quando nasce em alguém e encontra abrigo, mas morre com facilidade, quando não alimentado e é empobrecido, mas assim como o Sol, pode renascer. Sendo o amor, portanto, um intermédio de mortal e imortal, rico e pobre, sábio e ignorante.

    Pronto, chegamos ao mesmo ponto final que Goya e Aristóteles, mas fizemos um passeiozinho bacana. Quebrando com as classificações extremistas e dualísticas do mundo. Coexistindo em harmonia com o homem real e o ideal, estão as virtudes humanas, que nos aproximam ou afastam de um e de outro.

    Voltando ao tema de homem e sociedade, e aplicando as virtudes e valores a ele, temos que a Justiça é aquela que mais aproxima o ser humano de transcender. Pois é ela que regula as relações humanas em válidas ou inválidas. Para formalizar tal vontade humana de normalizar e regulamentar a justa posição dos poderes e obrigações humanos, nasce o Direito.    

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A Venda

-por Otávio Silva


 

    -Escute aqui. A partir de hoje, a única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

    E eu instantaneamente, discordei dela.

Xxx

A discussão era travada no primeiro vagão de um trem da CPTM. Nessas linhas, os vagões parecem ser mais largos que os de metrô, pois a disposição dos assentos nos passa essa impressão. Ao longo do trem, os bancos são dispostos lado a lado encostados às paredes laterais e direcionados à outra parede, em duas filas até que se encerram no posicionamento convencional de veículos e automóveis com os bancos perpendicularmente virados para frente ou para os fundos. Torna mais fácil agora remontar a cena:

Entrei no vagão tranquilamente, o Sol já se pusera, e, logo, o trânsito de pessoas era mais tranquilo realmente. Alguns bancos vazios e me sentei ao lado de um casal: um homem e uma mulher. Qual a relação entre eles? Não sei. Como estava essa relação? Conturbada, com certeza. Havia alguns sacos e sacolas no chão a frente deles e vários questionamentos por parte dela. E inversamente, da boca dele não saíam muitas respostas.

Tentando fingir que não prestava atenção à conversa, olhei para as pessoas do outro lado. Todas, indiscretamente, observavam o imbróglio. Ela reclamava sobre uma venda, feita por ele, da televisão da sua casa. Ele se defendia esquivando ao máximo do assunto e pedia desculpas a todo o momento. Visivelmente, os dois ou não percebiam, ou não se importavam com a atenção que chamavam.

Apesar do notório desentendimento, os dois estavam muito serenos. Não alteavam muito o tom de voz, tampouco gesticulavam em demasia. Àquela hora, mesmo com a noite exposta, o calor tomava conta do tempo e o abafamento do trem era evidente no leve suor no rosto dos dois, provocado pela estrutura do trem, que não apresenta uma saída sequer de ar. Enfim, a janela um pouco condensada atrás deles contornava-os perfeitamente.

O silêncio dos outros passageiros era paroquial. Assistiam ao vivo, a cores e em 3D, literalmente, à novela da vida real. Ela, desoladamente, lembrava os erros dele do passado, as promessas não cumpridas de mudança de comportamento e os displicentes pedidos de desculpas anteriores. E ele insistia que não fizera nada daquilo por maldade. E mesmo (ou até mesmo) por apresentar dificuldades na comunicabilidade, era expresso nos seus olhos o arrependimento.

As pessoas nem piscavam. Algumas delas tiravam repetidamente com uma das mãos biscoitos ou balas de saquinhos segurados com a outra. Um até desligou o celular rapidamente quando este tocou. Eu procurava me atentar ao motivo da briga. Procurava não virar o pescoço para eles, ao mesmo tempo em que compreendia algumas idéias, que, pelo jeito, já estavam sendo discutidas muito antes de eu entrar. E pelo que pude notar, o problema central era mesmo a venda da televisão. Ela queria o ter feito antes, e ele não autorizava. E agora, ele a vendera sem o mínimo consentimento dela e, ainda por cima, já havia gastado o dinheiro ganho e não sabia ao menos explicar com o quê.

-O aparelho era velho já!

Mas ele talvez não desse conta da importância dos atores e apresentadores na vida da mulher. Eles dois eram para todos no trem o que a TV significava pra ela: uma curiosidade pela vida alheia, uma troca dos próprios problemas pela preocupação no dos outros, a fuga da realidade, o escapismo, uma distração, um passatempo feliz...

Meu itinerário na CPTM abrange apenas quatro estações, mas pelo ritmo do trem, a viagem parece sempre mais longa do que realmente a é. Momentos antes de a minha estação chegar foi que eu ouvi:

-... A única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

E eu não perdi a chance de completar:

- Além da morte, minha senhora – disse já me levantando pra sair – A morte é a única certeza desde que nascemos.

Nisto, eles pararam de brigar, como se alguém invadisse o set de filmagem. Ainda bem que a porta já abrira, mas já de fora, dava para perceber as pessoas ao redor atônitas e incrédulas por eu ter, apenas, apertado o botão de desligar a TV...

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Sonho e o Sono da Razão Produzem Monstros





-por Otávio Silva








Pelo dicionário; razão é a disposição intrínseca do ser humano de conhecer, pelo espírito; de distinguir as idéias das coisas. Para a filosofia, é o objeto de estudo, bem como seus limites. Para Goya, é como um gato, tal qual o pintado no canto direito da obra. É, um gato e concordo totalmente com ele.




O título de sua pintura, datada do século 17 (mais fácil que algarismos romanos, eu reconheço que tenho dificuldades com eles), é El Sueño de La Razon Produce Monstruos, o qual eu me permiti fazer uma ampliação de seu sentido. Literalmente falando, a sua tradução é "o sonho da razão produz monstros", simplesmente. Mas vou tentar explicar o porquê do título do meu post.




Em um primeiro momento, é bom lembrar que a época em que a obra foi feita era dotada de um célebre contraste entre opostos. Luz e sombra, razão e emoção, material e abstrato, ciência e religião. E creio eu que Goya conseguiu, não sei se intencionalmente, de uma forma brilhante abranger tal oposição e ao mesmo tempo, acabar com ela.




Vemos na imagem, uma diferença entre o primeiro plano do quadro colorido e o fundo escuro, sem coloração definida ou significante. É o primeiro sintoma de sua época: o contraste entre a presença e ausência de cor é evidência da presença ou não da luz, uma vez que esta é condicional obrigatória para visualizarmos ou não as tonalidades.




Para os humanos, poucas são as condições necessárias para que os cinco sentidos aflorem e explorem o mundo exterior. Para outros animais, não é bem assim. Goya representou em seu quadro a coruja e o morcego, dois seres deficitários do ponto de vista da acepção do mundo externo. A coruja enxerga de noite, mas não de dia. E o morcego, tem audição aguda, mas já traz no nome a sua carência: é cego.




Parecem-nos evidentes algumas conclusões, então. Naquele contexto, reinava o iluminismo, corrente filosófica que pregava o racionalismo, o uso da razão como forma de iluminar a Idade das Trevas, dominado pela Igreja e suas explicações religiosas e dogmáticas para o mundo, nos séculos anteriores. Dessa forma, a ausência ou presença de luz representada pelas cores na pintura, comparam a idéia de luz ou sombra que o mundo fora dividido na época. E ao mesmo tempo, as deficiências dos animais retratados correspondentes à percepção, no comparecimento ou na falta de luz (razão) são respectivamente, o hiper-racionalismo e o irracionalismo, da Ciência e da Igreja.




Ficou faltando explicar a ampliação do título. Considero o sonho e o sono nocivos, simultaneamente. Isto, pois enquanto o primeiro é a extrapolação, os desejos e fins; o outro é a falta de vigilância e cuidado. Ou seja, acreditar estar puramente na razão – a Ciência, o hiper-racionalismo, a coruja, a luz – ou na religião – a Igreja, os dogmas irracionais, a emoção, o morcego, a sombra – a verdade das coisas, o sentido da vida, é estar cego, surdo ou incapaz para alguns aspectos.




Não que aqueles que tenham tais falhas de acepção não consigam sobreviver no nosso mundo. Claro que conseguem, mas tem dificuldades. Portanto, é preciso que sejamos atentos como um gato. Este ouve tudo e tem uma visão tanto noturna quanto diurna. Sabe dormir bem e descansar, mas também sabe estar acordado e vigilante. Sabe relacionar-se com o seu oposto, sem arrogância, como o faz seu primo selvagem, o tigre, e sem servilismo, como o faz o seu inimigo doméstico, o cachorro. Foi a alegoria que Goya achou para descrever essa simbiose de fé e razão e que racha com aquela visão dualística do mundo. É o ponto de equilíbrio, a justa medida, a mediana, o meio centro, o ponto médio etc. Como descreveria Aristóteles, mas isso já é conversa pra outro bar...




Bibliografia:




http://fotolog.terra.com.br/oza




http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://peregrinacultural.files.wordpress.com/2009/11/goyaosonodarazaoproduzmonstros.jpg&imgrefurl=http://peregrinacultural.wordpress.com/2009/11/23/papa-livros-viva-chama-de-tracy-chevalier/&usg=__ClzEc5Vvq7hZCy3QZOzDcZh4VWU=&h=522&w=350&sz=91&hl=pt-BR&start=1&sig2=N_A72oJ-iTHubcVJyWIZjA&itbs=1&tbnid=lOTAoTKxucDeNM:&tbnh=131&tbnw=88&prev=/images%3Fq%3Dgoya%2Bo%2Bsono%2Bda%2Braz%25C3%25A3o%2Bproduz%2Bmonstros%26hl%3Dpt-BR%26gbv%3D2%26tbs%3Disch:1&ei=6TLXS52dFoKdlge0lJj7Aw




http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Goya




http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Saturno_devorando_a_sus_hijos.jpg




http://pt.wikipedia.org/wiki/Saturno_devorando_a_un_hijo




História da Arte, Graça Proença. Editora Ática