O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O tal do Um Qualquer

- por Camilla Lopes

Ela desceu para fumar um cigarro enquanto esperava sua carona. Chovia fino e a paisagem estava cinza como Ela odiava, formando aquele cenário aconchegante para pensamentos indesejáveis. Ela estava sozinha, vazia e a vida ao seu redor parecia acelerada demais, vivida por viver. Quanto tempo mais aquele sentimento iria durar? Já fazia tempo. Alguns meses, talvez. Ela tinha medo de voltar para casa e conviver com ela mesma, não sentindo um ponto em especial para o qual voltar a atenção. O tal do objetivo de vida, a tal da convergência. Sabe, Ela é uma idiota por viver como numa tragédia shakespeariana. As coisas são mais simples do olhar de fora, Ela pensa, tentando ser fria. Mas não entende como certas coisas chegam a certos pontos. Metamorfoses, nostalgias etcétera. Ela não sabe mudar, quer ter o tempo nas mãos, dividindo-o em porções perfeitas de momentos perfeitos. Que se foda a perfeição, na verdade. Sim, existem momentos perfeitos, mas o que é a vida se não a busca por eles, no meio de uma neutralidade – talvez infelicidade - constante? De Shakespeare a Sartre, que masturbação mental. Paremos por aqui antes que eu dê uma de intelectual e esqueça que é uma perda de neurônio pensar sobre isso, Ela se corta.
Deixo tudo assim não me acanho em ver vaidade em mim Eu digo o que condiz Eu gosto é do estrago, Ele cantarola com um cigarro na boca e Ela se desconecta do fluxo de consciência, olhando para Ele. Jaqueta jeans Hard Rock Café - Save The Planet, um tênis do tipo sujo-rasgado. Um Bob-Dylan-sem-querer, porque Save The Planet’s e anos 60 hoje em dia sempre parecem forçados. Ele também olhou para Ela, meio inquieto. O que poderia acontecer? Nada demais. Coisas “demais” ficam para filmes, vontades, canções. Incrível como devemos perder almas gêmeas todos os dias por um banho atrasado ou um vagão de metrô errado. Ela começa a pensar nas coisas “demais”, na ficção que escreveria quando chegasse em casa e que provavelmente não sairia do jeito que Ela queria. Nunca sai. Ela pensa em como admira quem escreve livros e como isso não vira uma frustração na vida do escritor do jeito que é na sua. E pensa mais. Pensa demais. Ele a toca no ombro, Ela deixa novamente o mundo paralelo. What the hell? Ele está com a mão estendida no meio deles dois. Ela olha no olho dele, não entende e olha para baixo. Um bombom. Ela aceita, não é preciso dizer nada. Não é preciso pensar em nada. É o momento perfeito. Só continue respirando enquanto espera por mais outro.

sábado, 11 de dezembro de 2010

O esforço pra lembrar é a vontade de esquecer




-por Otávio Silva



Muito se passou entre o início e o final de nossa história. Dez segundos? Dois meses? Três talvez. Um ano ou dois. Dez anos? Uma eternidade. Quem sabe até quando iria continuar.

Eu era ninguém perto dela. Sentia-me sempre um nada. Um ser insignificante: pequeno demais para ser notado, grande o bastante para ser esquivado. Durante a maior parte do tempo foi assim. Desde o dia que eu passei por aquela boca, até hoje, quando da boca dela saiu o fim.

Encolhi perto dela. E ela não me queria distante. Pôs-me num potinho de vidro. Daqueles com gargalo estreito e uma cortiça tampando. E carregava esse potinho pra tudo quanto é lado. Até que a situação se esgotou.

Ao passo do calendário, ela ia se cansando de mim e daquela garrafinha em que me carregava. E passou a me esquecer pelos cantos, quando saía. Às vezes jogado mesmo. Resolvi reclamar daquilo e, um dia, ganhei um cantinho especial pra mim na estante do seu quarto. De onde eu ainda podia tentar enxergar, por de trás das pálpebras fechadas, o que ela sonhava à noite...

A terra girou mais um pouco em torno do Sol e eu acabei rebaixado, como Plutão, que era planeta e agora não é mais. Fui colocado atrás dos livros naquela mesma estante. Uma tentativa frustrada dela de me esconder os seus novos amores, que invadiam a sua cama, em noites escuras frias e chuvosas, ou tardes quentes e vazias.

Eu ainda podia ver, pelas frestas dos livros inclinados um ao lado do outro, flashes do quarto. A cabeceira de cama, quase nunca habitada por apenas uma cabeça. O criado-mudo, ao lado da cama, que me contava sobre seus amantes, quando ela estava fora.

O resultado disso tudo foi o meu amadurecimento, o meu conseqüente crescimento diante do estado que eu me encontrava. Cresci que não encontrava mais na garrafinha calor e conforto, mas pressão e sufoco. As paredes de vidro viviam embaçadas do meu suor, como o boxe fica depois de um banho quente.

Ao mesmo tempo, parou de chover na horta dela. E creio eu que por isso, ela resolveu lembrar-se de mim. Como se nada tivesse acontecido, como se hoje fosse o dia seguinte àquele que ela me guardara ali, ela tirou livro por livro da estante, em frente à minha garrafinha e abriu um sorriso pra mim.

O mesmo sorriso lindo de sempre. Todos os dentes perfeitos, harmoniosos como o som produzido pelo teclado de piano que eles me lembravam. A sua boca emoldurava-os com a mesma suntuosidade de um ornamento coríntio da Grécia Antiga. Os seus olhos castanhos guardavam a vivacidade, do mesmo modo que a garrafinha ainda me guardava. Os cabelos, o nariz, a face macia... Tudo exato como a imagem que permanecia em minha cabeça.

Ela se lembrou de mim. Planejava me tirar do potinho, finalmente. Mas eu já não soube se queria mais. É difícil se acostumar com um lugar, mas mais difícil ainda é se desacostumar; se desapegar de uma lembrança de realidade perene que parece passageira. Assim, em vão, tentou me puxar com dedo pra fora do gargalo estreito daquela garrafa. Por eu ter crescido, porém, não era mais possível a minha passagem, nem pela boca da garrafa, nem pela boca daquela que me pusera ali dentro.