O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Vento

-por Otávio Silva

Ela, aspirante à atriz, vinte e poucos anos. Com sua pele branca de leite, o cabelo quase salmão e os olhos azuis, destoava no meio do ônibus, que andava sobre a Av. Ibirapuera. Carregava uma bolsa no ombro que divulgava a peça que a trazia ao Brasil e entregava seu local de origem: “Tournée de Chat Noir Avec Rodolphe Ayres”. Dentro da bolsa, um avental de médico, figurino de sua personagem. Trajava uma camiseta pólo listrada de rosa e branco e uma saia clara até os joelhos, que mexia com a imaginação dos homens que no ônibus entravam.
Durante metade de uma hora, o calor forte costumeiro do meio de tarde, a fazia suar, corando de leve a sua pele toda, desde os calcanhares marcados com curativos do aperto dos sapatos, até a testa. E durante essa meia hora, encostada em um dos apoios do veículo, de frente para a porta de trás, ela continuava encantadora e intacta, atraindo os olhares de todos que não estavam dormindo.
Depois de um tempo passado, uma forte chuva caiu, como também era de costume, depois de um dia inteiro de sol. E eis que entra um rapaz negro no ônibus, apressado pela chuva, que já pintara de escuro algumas manchas em sua camisa branca. Passa pelo cobrador e anda até ficar à frente da porta, ao lado daquela mulher. Por algum motivo inexplicável, olharam um para o outro ao mesmo tempo. E sorriram. Ele disse ‘boa tarde’. Ela não respondeu, não entendeu aquelas palavras, mas compreendeu o gesto dele... Ele nem ligou. E só. Até saírem do ônibus, não posso dizer claramente, como um trovão que ilumina o céu fechado de uma tarde chuvosa, se aconteceu ou não mais alguma coisa. Mas só por esse momento, ele ficou cheio de si por receber um sorriso maravilhoso após um dia duro e sério em seu ambiente de trabalho. E ela, satisfeita por ter apenas cruzado com o seu próprio gato preto.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Confusão em Palavras

“Às vezes estamos em uma rota de colisão e nós não sabemos. Seja por acidente ou intencional, não podemos fazer nada a respeito.”



O pai havia prometido para a pequena Cecília pegá-la na escola aquele dia. Ele já saíra de seu escritório, mas percebeu que esquecia o celular em cima da mesa da sala e voltou para pegá-lo. Tentou chamar o elevador, que quebrara poucos minutos antes. Então, resolveu ir de escada.



Enquanto ele subia as escadas, Cecília guardava o material dentro de sua mochilinha após o toque que avisava o final da aula. Ela terminava de guardar o material, quando seu pai já pegava o carro para seguir em direção à escola.



Um vendedor ambulante de livrinhos infantis resolveu, naquela tarde, trocar a rua na qual oferecia sua mercadoria para os motoristas parados nos faróis. Cecília se despedia de sua professora e amiguinhos.



O pai de Cecília parou no mesmo semáforo que agora o vendedor vendia os livrinhos, e encostou o carro para poder comprar alguns para sua filha. No entanto, teve que ir ao banco logo na esquina para sacar algum dinheiro já que havia, naquele momento, apenas cartões e talões de cheque em sua carteira. Ao mesmo tempo que ele pagava o ambulante, Cecília parava para amarrar seus sapatos.



Quando o pai se voltava para o carro, decidido a continuar seu caminho, encontrou na calçada um amigo de infância, que teimou em tomar seu tempo e compartilhar tudo que acontecera em sua vida enquanto estiveram separados. Ao passo que ele escutava as aventuras do amigo, Cecília caminhava até o portão da escolinha onde combinara de se encontrar com seu papai.



Terminada a conversa, atrasado pelo encontro de seu velho amigo que havia parado para comprar revistinhas para a filha, ele pegou o celular e ordenou para que começassem a ação sem ele. O pai de Cecília estava parado no trânsito agora, aguardando o semáforo antes de cinco quarteirões da escola. No portão, onde a filha esperava, cinco homens encapuzados mandavam todos entrar, fechando as entradas e saídas, querendo roubar tudo que tivesse valor. Não tinham pena, nem dó. Mas tinham ouvido, e o choro da menina que estava no portão irritou-os ao ponto de fazê-la refém.



Quando chegou à escola, a polícia já interditara o local. Muitos homens fardados, e muita confusão. Neste momento, a garotinha tinha seu celular roubado e pela agenda telefônica, o cabeça da quadrilha conseguiu falar com o assim descrito 'papai' daquela criança que, por sinal, não parava de chorar.



Assim que tocou o telefone, ele reconheceu a voz. Talvez não reconheceria um dia antes, não depois de tanto tempo afastados. Mas ele reconheceu, tinha escutado a mesma voz, na sua frente, cara a cara há poucos minutos. O telefone ficou mudo...



Dias depois, fora encontrada a alma de Cecilia sendo carregada por dois anjos, que puxavam-na pelas mãos sentido contrário da chuva que caia molhando o pequeno corpo que tinha sido a morada daquele espírito. Poucos metros depois, o corpo daquele amigo do pai dela jazia já morto, sem anjos, sem alma. Em uma de suas mãos, apenas a arma que levara à nuca.



Se o pai de Cecília não tivesse esquecido o celular, se o elevador não tivesse quebrado, se o vendedor não tivesse trocado de rua naquela tarde, se ele não tivesse ido até o banco, se não tivesse parado para conversar com seu amigo que viria a se tornar seu maior significado para odio, Cecília teria voltado para casa com toda a sua infância pela frente. Mas a vida não é assim, e Cecília estava morta.

Uma ligação me fez pensar

- por Otávio Silva

Não quero mais ouvir sua voz
Não posso mais.
Não quero mais ver o seu rosto.
Os meus olhos já não querem mais me ver nos seus.
A minha boca não quer mais o seu pescoço.
Nem meus lábios querem tocar os seus.
Minha orelha não quer mais sua língua.
E uma mão minha não quer mais estar em meio aos cabelos seus.
Nem a outra, querem ainda as curvas do teu quadril.
Os meus pés também não querem mais se esquentar nos seus.
Meu nariz já não suporta aquele perfume.
E nem o meu peito quer recostar sobre os seus.
Na minha cabeça, sei exatamente que não te quero mais.
Mas o meu coração ainda quer o seu.

Dessa Vez

-por Camilla Lopes

É a influência que tuas palavras têm sobre mim
Que me prende aqui
É minha coragem insignificante
De deixar pra trás o que de lá nunca saiu
Que me prende aqui

São minhas lágrimas já cansadas de escorrer
E a minha cabeça já zonza de girar
São seus atos viciados em círculo
Que me fazem dizer mais uma vez
E eu te digo agora: a última vez

Dessa vez não volto atrás
Dessa vez não anseio mais
Dessa vez machuco mais
Dessa vez eu decido por mim
Pela primeira vez

Agora significo cada palavra:
Não me abrace, não me envolva
Abraço vazio, hesitante
Ora quer ficar, ora quer partir
E se a indecisão prevalecer
Me deixe ir
Pois cada sinal
Passe o tempo que for
Destrói o que custei a juntar de felicidade
Se for pra tudo terminar como começou
Então, que nem torne a começar

Sociedade

Não dormiu bem. Como em todas as noites, sentiu-se desconfortável com o colchão e, nos seus sonhos, reclamou de seu travesseiro. Ainda no escuro da madrugada fria e opaca como a de São Paulo, foi ao banheiro, livrou-se dos embargos do dia anterior, tomou uma rápida ducha fria e, como de costume, cortou sua pele junto as pêlos da barba. Antes mesmo de olhar pela janela da sala, já previa o trânsito que o esperava. Vestiu uma calça e um par de sapatos pretos, uma camisa azul clara quase branca, uma gravata listrada, que estava usando na noite em que conhecera Jasmin... Queria esquecer tudo de uma vez, mas não conseguia. Puxou o paletó do cabide e foi chamar o elevador do prédio. Foi até o quarto de sua filha. Ane ainda dormia, como todos os dias e, como todos os dias, sentiu a angústia no peito de deixá-la em casa arrumar suas coisas sozinhas antes da perua da escola vir buscá-la, mas era por ela que saía cedo todos os dias e chegava tarde todas as noites.

No caminho do trabalho, em meio ao incontável número de carros absurdamente parados diante de um farol verde, Ricardo voltava a pensar em sua filha. Olhava aquelas famílias inteiras debaixo de pontes... Só o que tinham era uns aos outros, mas os tinham. E ele que trabalhava tanto para dar um conforto, uma vida melhor a Ane, não conseguia dar a si mesmo.

No trabalho, o agora Sr. Ricardo deixava para fora da porta do escritório todo e qualquer pensamento da vida pessoal que podia ter, não podia e nem gostava de misturar os dois âmbitos de sua vida. O Rica, como era chamado pelos colegas de trabalho durante happy hours de quinta-feira que ele frequentava enquanto esperava acabar o horário do rodízio, era do departamento de Recursos Humanos. Era ele quem tinha o papel de demitir e contratar pessoas novas, funcionários novos. Às vezes eram só peças novas. Brincavam que ele tinha o poder de demitir até o presidente da empresa, se quisesse. Mas ele não brincava em serviço. Atendia muitas cartas, e-mails e aspirantes a todos os tipos de cargo, todos os dias. A maioria inevitavelmente não atendidos quanto aos seus pedidos.
Naquele dia, sua secretária anunciou a entrada de um 'figura engraçado', que pedia para ser entrevistado. Mandou que entrasse. E realmente, o rapaz de fronte a ele, era, no mínimo, irônico para a situação. Com um par de chinelos havaianas separando os pés do chão e canelas finas e com cicatrizes que acabavam em um joelho coberto pela barra de uma bermuda tactel, interrompida na altura dos quadris por uma camiseta branca regata.
O jovem rapaz, auto-intitulado Zé Ninguém, apresentou-se como recém-formado em uma universidade daquelas de esquina no curso de Administração. Sem acreditar muito no que ouvia, Ricardo dava corda àquela conversa. O garoto requeria apenas o cargo de vice-presidente da empresa. Curioso com a audácia, pediu para que o jovem se sentasse e lhe convencesse porque devia admiti-lo:
-Conte-me suas experiências, senhor. - cordial e sarcástico Ricardo começou a entrevista, como de praxe. E o senhor a quem ele se referia, começou a responder, com a maior segurança do mundo:

- Não tenho muita experiência na área pela qual imagino que o senhor esteja interessado. Tenho, no entanto, uma grande vivência no assunto “vida”.

- Acho que tal resposta justifica um pouco o vestuário e as suas exigências quanto ao cargo. Mas explique, - disse Ricardo, mais curioso do que se permitia estar- o que quer dizer com “vivência no assunto ‘vida’”?

- Tenho meus princípios, senhor. E eles vão além da experiência de trabalho. Serei breve se me permitir, e mostrarei aqui o que estou falando.

- Estou ouvindo. - disse Ricardo, sabendo que estava indo longe demais com aquela historia, mas se sentindo viciado nas palavras que poderiam vir da boca daquela pessoinha tão estranha e interessante.

- Me diga, qual o propósito de tudo isso, afinal? Digo, de toda essa empresa e das relações que se mantêm nela. Entendo que vivemos em um mundo de seleção natural, e nada mais justo do que aqueles que se esforçam mais se destacarem mais. Não digo que sou a favor de todos abrirmos mão de nossos luxos e benefícios, afinal é incrível tudo que nós conquistamos cientificamente. Mas não pode faltar caráter. O homem não sabe seu limite, até onde ele pode ir sem prejudicar a si mesmo e ao próximo. É preciso equilíbrio, é isso que penso. Muitos tem pouco e poucos tem muito. Onde esta o equilíbrio nisso? Nós podemos mudar a sociedade, porque nós somos a sociedade. Se não quem vai mudá-la? Falta aqui atitude. Acredito que as pessoas têm consciência, mas não tem atitude.

Ricardo se mantinha paralisado, estupefato. Em um momento anterior, com certeza aquelas havaianas surradas já teriam saído de sua sala muito antes, junto com o corpo que as movia. Mas, naquele dia, ele seguiria adiante com aquele conversa.

- O que me leva a dizer que se não se está satisfeito com o modo pelo qual vive, (continuou Zé Ninguém) procure outra coisa que te satisfaça. Sei que se tem medo de mudar, e que precisamos lutar para termos nosso conforto, darmos comida para nossos filhos. Pois então lute por algo que você admira, não por algo que despreze. O que vivemos pensando é que sempre teremos uma segunda chance para fazermos o que gostamos. Mas não temos, a vida é uma. Este é o meu diferencial, senhor. Gosto do que faço, e estou aqui lutando por o que gosto. Sem, porém, me desvencilhar de meus ideais. Mostro assim, também, que não só é importante como possível haver um equilíbrio dentro de uma empresa, dentro de uma sociedade.

De repente a sala ficou quieta, podendo se escutar apenas as respirações ofegantes.

“O cara parece um aspirante a comunista ou anarquista, viciado em Rousseau e Thoreau”, pensou Ricardo. E então, respirando fundo e se recompondo, Rica pegou sua pasta de couro pesada e seguiu em direção a porta, sentindo um suor frio escorrendo pela sua testa.

- Me desculpe, mas não posso ficar. Chamarei outro profissional para conversar com o senhor.

E saiu de lá sem saber o que fazer, apenas pensava. Pensava em Jasmin, o quanto o sentimento pela sua morte o abalara, mas que agora conseguia sentir apenas sua falta e como tudo ao lado dela tinha o feito feliz. Pensava nos seus planos que foram enterrados junto a ela, mesmo ainda tendo toda vida pela frente e na estagnação que havia chegado. Ricardo não saiu nu pelo meio da rua e nem pegou as malas e foi embora. Não tivera a conversa mais importante de sua vida e saiu comprando livros de auto-ajuda. Tinha uma filha, tinha amor por ela, e tinha responsabilidades. Mas saiu mudado, e só Deus sabia a qual conclusão chegaria até chegar à porta de sua casa. A caminhada seria longa.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Terra da Garoa

- por Otávio Silva

Sao Paulo chora
Chove e causa enchente,
Tem gente que chora
E faz chorar
O céu se fecha e como uma flecha
Derrama o seu dilúvio
Alaga e alarga.
Laaarga a mão e começa a aprender
Os cuidados dispensados com a Natureza
Que devíamos ter.
A criança que espera
A mãe chegar da rua
Diz que aquela fome sua
É a fome de uma fera
Fere. E agora está sendo ferido.
A embalagem daquilo que comia
É uma barragem no boeiro entupido.
Afasta de ti essa tua displicência,
Que a ciência já deu o parecer final;
é essa a conseqüência do aquecimento global!

Acaso

Acordou. Mas não quis abrir os olhos. Estava tudo muito quieto, não era sua casa. Não sabia onde estava, mas sabia que não era sua casa.

Xxxx

Morou quase a vida inteira sozinho. Todos os dias, de manhã, acordava cedo para comprar pão e jornal. O pão ele já não come mais, de acordo com as orientações do doutor. O jornal era a grande ocupação e maior companhia durante a tarde. Nesses passeios matinais, Seu Carlos demorava em torno de uma hora para atravessar dois quarteirões. E mais quase uma pra voltar. Demorava-se mesmo. Apreciava aqueles quase duzentos metros de caminhada. Cumprimentava os transeuntes, o dono do boteco, o sapateiro e a mulher, o dono do açougue. Parava um pouco pra contemplar algum detalhe novo que ainda não se dera conta e todos aqueles outros detalhes que ele já conhecia de cor e salteado...
Antes de sair de casa, Seu Carlos penteava de lado os seus finos cabelos prateados, escolhia uma camisa bonita, apertava o cinto da calça, engraxava os sapatos e saía... “Saio para tomar meu banho de ar”, ele dizia. Fizesse sol ou chuva, lá estava ele, todos os dias. Naquela pequena cidade, diziam que todo mundo se conhecia, mas não era verdade. Todos conheciam o Seu Carlos. E chegavam a acreditar que ele estava ali antes mesmo da cidade. Mas também não era verdade.
Carlinhos fora mandado para o Brasil durante a Segunda Guerra. Veio para acompanhar a decisão de Getúlio Vargas sobre de que lado iria ficar na guerra. Era soldado dos fascistas, mas se perdeu de sua tropa no meio do caminho. Morara na Itália e, quando moço, era alegre, extrovertido e muito vaidoso. Conquistara a todos e a todas com seu sorriso. Mas seu coração era de Valentina, uma menina estudiosa e que não ligava para os encantos da juventude. Carlinhos viera para cá, e nunca mais teve contato com ninguém do lado de lá do Atlântico. Botava a culpa no mar, que era muito grande pra poder atravessar, senão iria nadando encontrar os antigos conhecidos. Se era solitário? “Magina, é até bom. Não tem ninguém pra dividir a cama comigo.” Se era triste? "Claro que não, tenho uma vida inteira pela frente" era o que ele dizia tossindo forte pelo esforço de uma risada.

Xxxx

Tornara-se médica. Gostava da ideia de poder ajudar os outros e, ainda depois de aposentada, viajava de cidade em cidade do interior daquele brasilzão para tentar melhorar a infra-estrutura de cada local. Gostava de botar as mãos na massa! Chegou ao Brasil para dar aula em uma universidade da capital, mas mesmo assim não se sentira útil o suficiente e resolveu sair tentando satisfazer essa sua necessidade...
Acordou um dia de manhã e olhou pela janela de sua pequena casa, como de costume. “Um dia como tantos outros”, pensou. Aquelas próximas duas semanas iria passar em uma pequena cidade do interior de São Paulo, o tipo de cidade pequena interiorana em que se tem a impressão de que todos se conhecem. Sentou-se à mesa sozinha, tomou seu café e levantou-se novamente para se arrumar: colocou um jeans surrado e uma camiseta confortável, fazendo um tipo de careta. Era inevitável para ela, mesmo sabendo o quão satisfeita se sentia com aquilo que fazia, pensar no caminho solitário que escolheu para si.
Quando pronta, seguiu para a porta sem muito mais demora e pegou o ônibus que a levaria para o projeto em que se aplicava agora, no qual dava auxilio médico às crianças carentes daquela região. Olhava para a rua através da janela distraída, vendo as pessoas andarem pelas suas rotinas, e imaginando a vida de cada uma. Um homem em especial chamou mais a sua atenção. Era esbelto e charmoso, apesar de sua idade já avançada. Seu jeito a lembrava de alguém por quem parecia guardar muito carinho, mas ela não conseguia se lembrar de quem.
O ônibus parou em um semáforo, e isso a deu mais tempo para observar o senhorzinho em seus pequenos passos. De repente, o homem parou e abaixou sua cabeça. Colocou a mão sob o peito, parecendo tentar descobrir desesperadamente para onde o ar havia ido. E, quando ela se deu por si, o querido homem esbelto estava em seus braços, os dois sentados no meio fio da rua enquanto o ônibus avançava para seguir caminho.

Xxxx

Seu Carlos abriu os olhos cuidadosamente, sem saber o que esperar. Sabia que não estava em sua casa. Sua vista foi aos poucos desembaçando e os móveis tomando forma, tal como os traços de uma mulher que estava estendida ao lado da cama na qual estava deitado. Tudo pareceu acontecer muito lentamente, mas não tão lento quanto o tempo que levou para ele ver aquele rosto novamente. Perguntou para si mesmo algumas muitas vezes se era devaneio seu, ou se estava morto. Tudo aquilo não fazia sentido algum. Até que se deu conta de que, naquele momento, isso não interessava, pois era ali que queria estar, independente do motivo. Então, se entregando àquele sensação única que esperou tantos anos para sentir, soltou em um alívio “Valentina...”


- "Quando menos se espera as coisas acontecem" já é quase um ditado popular. No entanto, de fato, as coisas de verdadeira importância para nós sempre nos surpreenderão, não importa o quanto tentamos prevê-las.

Deficiência

Prefácio

A deficiência não precisa ser exclusivamente física ou mental. Pode, também, estar ligada a alguma relação turbulenta, causada muitas vezes por uma deficiência na forma pela qual um casal se entende. Uma deficiência no modo como um entendeu o outro.

*

Era uma noite de julho, seca e suportavelmente fria. Eu sabia o quanto ele gostava do tempo assim, e isso me fazia gostar também. Parei para pensar: “Incrível o tamanho da influência que ele tem sob mim. Penso que, talvez, não o admiro pelo fato de que seus gostos são semelhantes aos meus. Talvez seus gostos sejam semelhantes aos meus pelo fato de que o admiro.”
Estávamos, eu e ele, em uma sacada alta que dava de frente para um campo. A vista era extraordinária por simplesmente não se conseguir ver o fim daquela escuridão, e a paz que eu sentia não me permitia escutar o barulho que vinha por detrás da porta a nossa esquerda, a qual dava para um salão de festas. Um cenário perfeito, quase tão clichê quanto o de filmes, se não fosse o verdadeiro motivo que nos trouxe até ali. Ele me olhava com um olhar piedoso, como se estivesse acabado de entender um grande erro, o grande causador de algum grande problema. Erro ou problema o qual eu não conseguia imaginar.
Percebi sua inquietude e comecei a tentar ler aqueles olhos tão negros e tão infinitos quanto o breu que estava diante de nós. Toda aquela imensidão parecia guardar um milhão de segredos esperando serem descobertos, mas quanto mais eu tentava me aprofundar, mais eu me perdia em minhas dúvidas e mais meu coração disparava com todas as possibilidades que passavam pela minha cabeça. E então, depois desse momento que poderia ter levado segundos ou horas (eu não saberia responder), ele pareceu terminar de formular as frases que antes deveriam ser apenas um emaranhado de palavras na sua mente, respirou fundo e em um só suspiro disse, como se estivesse soltando o ar que ficou tanto tempo guardado dentro de si: “Ana, escute com atenção. Eu receio que não estejamos seguindo o mesmo caminho aqui.” Não entendi o que ele queria dizer com aquilo. Depois de tanto tempo, como não estávamos no mesmo caminho? Ele me disse que tinha planos. “Eu quero ir para o exterior, quero conhecer Roma, tomar chá com os antigos faraós do Egito, meditar com monges tibetanos, eu quero a vida. E do jeito que eu estou, eu só tenho a morte. A sua mãe me odeia, e por ela, não devíamos nos ver mais.”
O modo como ele falava, me dava agonia. Os seus gestos pareciam de quem queria se desvencilhar de algo que o prendia, de algemas, ou cordas, mas eu não entendia. Eu fazia de tudo por ele. Colocava as músicas que ele mais gostava pra tocar em seu quarto, ajeitava suas roupas nos armários, o levava toda semana pra comer no restaurante que ele ia com os amigos. E ele nunca se dava por satisfeito. Nunca. Ao ouvir isso, ele apenas passou a mão nos cabelos, virou de costas, e voltou para a festa. Por um instante, eu tive raiva da minha mãe. Devia ser culpa dela. Ela é que arruinava tudo ao meu redor, não podia me ver mais feliz do que ela, tinha ciúmes dos meus relacionamentos, inveja dos meus sucessos. E me bateu um aperto forte no peito, um medo de perder a pessoa que eu mais amava neste mundo. Senti-me só naquela escuridão e senti o ambiente muito mais escuro do que antes. Começava a chover. Resolvi entrar para o salão e nunca mais tocar no assunto. Segurei firme as lágrimas, passei o lenço nos olhos e aguentei. Não podiam me ver chorando, e não viram. Não aquele dia.

*

Ontem ele voltou de viagem. Logo que chegou, me procurou, marcou um almoço em uma lanchonete tipo americana, com o chão coberto por azulejos quadriculados, mesinhas quadradas com famílias felizes e paredes pintadas coloridas. Me contou sobre tudo que havia feito naqueles três anos que tinha passado longe. Muitas das coisas já ouvira antes pelo telefone ou lera nos seus postais, mas nunca conseguira sentir toda aquela felicidade e entusiasmo, e aquilo me incomodou. Quando ele parou de falar, não pude deixar de perguntar o porquê disso tudo, essas viagens, essa felicidade em estar longe de mim, de sua família, de tudo e de todos. E ele me disse que o sufocavam, que as pessoas tinham pena dele por ter passado só alguns meses no hospital e que tentavam fazer de tudo para mascarar a doença por qual passava. Que não queria as pessoas fazendo as coisas por ele, que adivinhassem onde queria comer, o que queria ouvir, vestir... Que estava cansado, e que resolveu viajar para fugir da doença e aproveitar o tempo que lhe restava...
Naquele momento eu não me segurei mesmo. Eu nunca tinha perguntado nada daquelas coisas, simplesmente fiz, por que achei que era o que precisava ser feito. Naquele momento, me dei conta de que as coisas que precisam ser feitas, devem ser feitas por aqueles que querem ou necessitam daquilo. Que ninguém deve ser obrigado a enxergar a vida pelos olhos dos outros, sentir a vida pela pele dos outros. Naquele momento, eu vi. Naquele momento, eu o enxerguei com meus próprios olhos, do outro lado da mesa, cair, perder a cor e revirar os olhos. E eu não prestei socorro, não chamei ambulância, não fiz nada. Senti que não devia, que ele queria estar ali. Era como se soubesse, se previsse quando fosse acontecer. E aí sim, eu chorei, porque sabia que ele o queria. Chorei muito sentida a morte do meu pai.