O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






quarta-feira, 31 de março de 2010

Despedida

-Moço, cadê meu pai e minha mãe?
Foi sua primeira pergunta quando acordou. Estava sozinha. E parecia consciente da situação em que se encontrava, apesar de sua pergunta, à qual o homem que chegava ao quarto não conseguiu responder. A menina, com um rostinho moreno e delicado, que denunciava seus dez anos de idade, tinha um cabelo negro forte, todo cacheado, que emoldurava os seus olhos cor de esperança, já morta ao se ver deitada em uma cama desconhecida e vestida de roupas brancas. A cama estava em cima de um chão igualmente branco, que se estendia até as paredes alvas enfeitadas com bichos e desenhos. O homem que chegava também vestia um avental branco e, sem fazer qualquer comentário, ele apenas mexeu no soro da menina. Foi da mesma cor o clarão que iluminou a última visão consciente da qual ela tinha lembrança.
E então, ela acordou novamente, meio desnorteada, sem saber muito bem o que estava acontecendo. Provavelmente a grande dose de sedativos ainda corriam em suas veias. Uma grande dose para uma pequena menina. Havia acordado com um peso a mais do lado esquerdo de seu colchão. A menina olhou para verificar qual o motivo daquele desconforto e se deparou com uma moça loira, cabelos ondulados, um rosto juvenil e angelical, transparecendo cumplicidade e calmaria, sentada no canto de sua cama. “Olá, pequenina”, disse a doutora. A pequena tentou abrir um sorriso e responder o cumprimento, mas foi quando percebeu quão limitados estavam seus movimentos. “Não se preocupe”, disse o rosto angelical percebendo a dificuldade da garota, “vim aqui só para conversar com você.” A menina se sentiu aliviada. Finalmente entenderia o porquê de estar ali. Fez força para lembrar alguma coisa que a ajudasse a acompanhar a conversa que viria, mas se lembrava apenas de momentos embaçados, confusos. Será que ela realmente queria saber o que havia acontecido?
A moça loira recomeçou a falar: “Veja bem, querida. Agora é um momento em que você precisa ser forte, e eu sei que você é. Já é uma mocinha, certo? Sabe que a vida é uma caixinha de surpresas e que as pessoas vão e vem, cada uma em sua hora.” A garotinha via aonde aquilo ia dar. Ela podia ter 10 anos, mas não era boba. Só não sabia se queria ouvir. Toda aquela baboseira de caixinha de surpresas e cada um tem sua hora era o tipo de coisa a qual os médicos eram treinados a dizer. Até mesmo a carinha acolhedora tinha sido um treinamento algum tempo atrás. Nada daquilo importava. Nada daquilo ia adiantar o pouco que fosse. E então a menina resolveu bloquear qualquer sentido, qualquer entrada ou palavra que pudesse afeta-la, de qualquer maneira. Esperou cuidadosamente a doutora bonita terminar de falar seu ensaio e sair pela porta para deixá-la sozinha. Quando isso finalmente aconteceu, ela se sentou na cama. Percebeu que havia vários tipos de corda que estavam a prendendo na cama, que iam de drogas a agulhas na veia. Mas isso também não importava. Ela se levantou zonza, com uma extrema dificuldade de movimento, e seguiu em direção à porta que provavelmente seria o banheiro. Entrou lá evitando se olhar no espelho, se encostou à parede e se deixou escorregar até o chão. Deitou de lado segurando suas pernas junto ao peito, apertando forte, tentando diminuir seu tamanho até sumir. Sumir seria uma boa idéia. E ela começou a pensar no que mais seria uma boa idéia. Talvez voltar para cama e esperar por mais sedativos para poder dormir, talvez ir ao encontro de seus pais naquele lugar o qual a moça loira chamou de “lugar melhor, onde eles estão mais felizes”. Ela não teria muito tempo para a pensar, a dor já havia tomado conta de todo o seu corpo, tanto de dentro para fora, quanto de fora para dentro.

sábado, 27 de março de 2010

Indizível

-por Dri de Santi
Nosso amor é poema inacabado
Ao qual falta a metáfora absoluta.
Sai do universo infinito das palavras
E chega à imensidão da voz que cala
Por saber-se indizível –
Silêncio que tudo espera e consente.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Uma Esmola

-por Otávio Silva

Entrei no ônibus já sem muita pressa, pois já tinha perdido meu compromisso. Àquela hora, os trânsitos de carros na rua e de pessoas no veículo já não eram intensos. O Sol já tinha se escondido atrás da noite e a cor do céu já tinha ido embora.
Passei pela catraca depois de pagar o pedágio pro cobrador e atravessei todo o ônibus para me sentar naquele último banco, o banco do meio da última fila. Podia ver, a cada ponto, o movimento das pessoas que entravam e saíam, as conversas, os sonos atrasados, tudo da mesma perspectiva. Via todos chegarem de frente pra mim e quando se sentavam, de costas. Aquele corredor já fora mais movimentado em outras viagens, confesso. Mas uma ação em especial, me tomou a atenção.
Diante de uma fila de pessoas trabalhadoras, com expressões fechadas e cansadas, um homem de cabelos enrolados, curtos e cacheados definidamente, cujo rosto acompanhava a espessura dos braços: magros e com os ossos à mostra, ficou parado no meio do corredor e vinha em direção ao fundo quase que em uma prece. Vestia uma camisa social listrada verticalmente, o fundo da camisa azul clarinho era interrompido por faixas finas brancas e amareladas. O cinto e os sapatos pretos se camuflavam com a calça também preta que ele ostentava. Não, ele não chamava atenção, talvez muitos nem devam tê-lo ouvido.
Já é comum nos dias de hoje, nos ônibus, pessoas entrarem pela porta de trás com consenso de motoristas e cobradores para pedir esmolas ou vender mercadorias com origens suspeitas e descerem no próximo ponto durante o dia todo e fazerem disso o seu ganha-pão. Ainda me surpreendo com o talento para vender dessas pessoas, muitas vezes compro algum chocolate ou guloseima só pelo discurso delas. Mas aquele discurso, não vou dizer que me conquistou, mas me tocou bastante.
O rapaz falava baixinho, diferentemente de outros publicitários e marqueteiros ambulantes:
-Pessoal, desculpa interromper a viagem de vocês... Eu comecei a me interessar pelo que ele dizia, exatamente porque eu não conseguia escutar, como aquela aula chata do professor tímido, que fala baixinho, e você no fundão não escuta nada e começa ficar curioso pelo assunto tratado, como curioso por um segredo.
-...Eu podia tá matando, pessoal, eu podia tá roubando, mas não, eu to aqui... Começava a identificar as palavras não exatamente pela compreensão exata de seus sons e fonemas, mas pela quase concordância, que elas faziam entre si, em frases tão manjadas e escutadas que estão quase que decoradas nas nossas mentes.
-...Eu saí de casa quando pequeno, tô aqui, batalhando, ralando! Acabei de sair do serviço, mas o dinheiro que ganho não dá pra quase nada, e eu to aqui, pra pedir um pouco pra vocês, não o padrão de vida que vocês têm... Eu não quero ter suas condições dignas de morar, não quero comer o mesmo que vocês come, nem comprar o que vocês pode comprar... E o olhar dele penetrava, a tristeza era explícita naquele olhar, naquele gesto, naquela figura descarnada, ninguém se mexia, não sei se ouviam, mas faziam como uma classe quieta que presta atenção na lição... E ele continuava, com sua voz baixinha, rouca e tímida:
-...Eu só queria ter o amor que vocês têm. A família que vocês pode ter, as amizades... Eu não quero dinheiro não, eu quero pedir só um beijo, um abraço, um aperto de mão qualquer que vocês possam dar...
O ônibus inteiro continuava imóvel, como a sala de aula quando o professor faz alguma pergunta que ninguém sabe a resposta. Nessas horas, nunca se sabe se ninguém mesmo sabe, ou se quem sabe não está interessado em responder, ou está com preguiça ou não tem certeza da resposta. Não sei o que acontecia com os outros passageiros, só sei que o rapaz nem olhou para os lados para saber da resposta das pessoas, simplesmente abaixou a cabeça, apertou o botão para descer na parada seguinte, respirou fundo, sacolejou junto ao movimento do ônibus e saiu assim que pôde.
Não sei se continuou em seu objetivo, como continuam os vendedores ambulantes, não posso dizer. Só posso dizer que no ônibus nada mudou. As pessoas continuaram seu trajeto, uns ouvindo mp3, outros dormindo, outros possivelmente refletindo acerca da bronca que o professor passou... Ou acerca de uma novela, de um reality show, do que vai ter no site de relacionamentos... Ou até mesmo no blog quando chegar em casa.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Se você fosse a última pessoa do mundo, do que você sentiria mais falta?

-por Camilla Lopes

Uma pergunta difícil pra uma viagem de metrô às 7h da manhã. Penso que é no vagão do trem que nós começamos grande parte de nossas dúvidas e concluímos a maioria de nossas decisões. Foi inevitável refletir sobre a pergunta. O que é importante o suficiente pra mim a ponto de ser o que eu mais sentiria falta se não tivesse me restado mais nada? Acredito que muitos diriam “minha família”, “meu amigos”, “meu namorado” ou “meu cachorrinho” (vai saber). Sim, eu sentiria falta deles. Mas eu iria mais além.
Eu sentiria falta das coisas que só percebemos quando não podemos mais vivê-las, tendo aquele gostinho já conhecido de nostalgia. Sentiria falta de acordar de manhã e saber que eu veria meus amigos, de deitar no sofá pra assistir novela com meus pais, de enlouquecer com o acúmulo de informação naquelas tardes no computador.
Eu sentiria falta da sensação estranha de quando saímos da sala de cinema de um filme que gostamos muito, de encontrar as meninas pra comer pão de queijo e reclamar da vida boa, ou de receber uma mensagem inesperada de madrugada. Eu sentiria falta até de esperar por essas mensagens, achando que meu celular está tocando quando na verdade não está.
Sentiria falta de dar a mão, de olhar no olho, de fazer cócegas, de dar colo, de abraçar e de mexer no cabelo. Eu sentiria falta não só das pessoas, mas dos momentos, do que eles me fizeram sentir e ainda me fazem cada vez que eu anseio pelas outras coisas que virão. Eu sei que a pergunta do metrô pedia uma resposta pequena, mas como isso aqui não está valendo um carro zero ou uma casa própria, eu digo: Eu sentiria falta de ter planos, um futuro, de ir dormir sabendo que amanhã é um novo dia, que estará na minha frente como um quadro em branco esperando pra ser pintado como eu bem entender.

sábado, 20 de março de 2010

Furto no Metrô

-por Otávio Silva

Por muito pouco, não fui testemunha de um furto hoje no metrô. O sinal já piara alto e as luzes vermelhas já estavam acesas, quando elas ultrapassaram a porta do vagão que fechava. Aquele trem estava relativamente vazio comparados ao mesmo bat-local e bat-horas diferentes, mas ainda assim, não haviam mais lugares para se sentar e as três ficaram de pé a uns dois metros de distância de onde eu estava.
O trio descrito acima tomava de assalto a atenção de todos do metrô. Mentira, nem todos as observavam, mas os meus olhares eram para elas e nada mais. Depois que elas entraram no vagão, eu nem tenho mais como descrever os outros passageiros, o movimento ao redor delas, nem os meus próprios.
Então, façamos o que eu tenho meios para fazê-lo: descrevê-las. As três pessoas a quem eu me refiro eram bem jovens, o uniforme da escola que elas vestiam não me deixaria mentir. Camisetas brancas apertadas e cada uma com um shortinho mais curto e mais colado que o outro. Os cabelos todos castanhos claros, combinavam com os olhos castanhos escuros e a pele viva e corada dos rostos emoldurados, dos braços finos e pernas à mostra. Conversavam sobre provas e trabalhos e fofocas... Eu acho, pra falar a verdade, nem prestava muita atenção.
Foi então que em duas estações seguintes, um número consideravelmente grande de pessoas desceu, talvez para fazerem baldeação. E o veículo ficou mais vazio e apesar daquela minha fascinação pelas meninas ter ficado mais chamativa e óbvia, eu o continuei fazendo.
Faltava pois, uma estação para a que eu desceria, mesmo assim, ao ver um assento vazio, sentei-me, e duas daquelas três garotas, sentaram-se nos assentos ao lado. Uma delas percebeu o zíper do compartimento mais externo de sua mochila aberto e sentiu. Pois bem, sentiu primeiramente a falta do celular, depois sentiu a falta da carteira e acho que sentiu desespero, talvez se sentisse tola, ingênua, não sei. Começou a chorar, confessava-se muito dispersa, dizia que seus pais ficariam bravos e chateados. As amigas a consolavam. Fiquei com dó. Ainda sobravam alguns tripulantes no vagão e eu fiquei indagando a mim mesmo quem poderia ter sido o ladrão, se ele ainda poderia estar por ali, como teria acontecido. Como teria acontecido sem eu ver? Eu nem percebi!
Quando parei de pensar, reparei que tinha perdido a minha estação, desci na imediatamente mais próxima para voltar, e comecei a não ter mais dó da menina. Afinal de contas, eu nunca fui assaltado, nem roubado, nem furtado. É só ter atenção, oras. Ah, quem mandou ser tão avoada?

domingo, 14 de março de 2010

Antropologia na Veia

-por Camilla Lopes

Hoje em dia sabemos que em meados do século XVI havia todo um poder maior girando em torno da Igreja católica. É comum acharmos que na época da colonização, nobres e pessoas no poder em geral eram cientes das falcatruas da Igreja, mas as contornavam para poderem exercer o seu poder também. Em outras palavras, os colonizadores aproveitavam o domínio da Igreja pela fé para dominar.
Não que este fato esteja incorreto, pelo contrário. A Europa naquele momento passava da Idade Média para a Moderna, dos feudos para a expansão marítima, tendo um desligamento do clero, que passava a não mais ser grande senhor de engenho, mas sim um apoio ao rei e aos grandes mercantilistas.
Certamente que a Igreja teve seu passado negro. Durante a Inquisição, pessoas foram torturadas (muitas vezes injustamente), livros foram proibidos e queimados e até mesmo as palavras da bíblia foram mudadas para palavras de maior interesse, já que apenas os padres podiam saber latim e logo ninguém mais era capaz de ler o livro sagrado (na época transcrito apenas para essa língua).
Tudo parece uma máfia interesseira, imaginando assim. O que não paramos para pensar, porém, e o que os livros escolares muitas vezes não frisam, é que esta é uma versão generalizada. Nem tudo foi combinado e feito um acordo maléfico entre nobres e Igreja. Não existia uma separação concreta e pura entre vilões e mocinhos. Os nobres ou colonizadores muitas vezes tinham suas crenças e se apegavam a elas, tendo que exercê-las custe o que custar. Naquela época o pensamento era extremamente diferente do que vivemos hoje.
Um grande exemplo é o que o livro Colombo e os Índios, de Txvetan Todorov cita. A primeira referência de Colombo quando chega à América é à nudez dos índios, que por estarem desprovidos de roupa - o que era estranho para a cultura européia – eram desprovidos também de cultura. Sendo assim, é comum lermos sobre a justificativa de levar a civilização aos povos selvagens usada na colonização. Sim, há também por trás disso todo o interesse em mercadorias e metais nas colônias. Mas é inegável que há uma lógica na opinião de Colombo em relação à ausência de cultura dos indígenas já que para um homem como ele, os seres humanos passaram a se vestir após a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Isso vale para muitos outros europeus que chegarem à América e a olharam com seus olhos habituados a sua cultura e apenas a ela.
Há de se relevar exceções dentro da história da colonização (como em qualquer outra história). Nem tudo foi um plano de domínio estratégico, ou um grande acordo secreto entre as classes superiores. Havia uma crença e uma cultura e, devido a elas, um bloqueio para com culturas diferentes. Isso devia ser comentado em qualquer instituição de ensino. Senso crítico é algo que deve ser desenvolvido no ser humano desde sempre.

sábado, 13 de março de 2010

A Casa Azul e o Pássaro Verde

-por Otávio Silva

Quando eu era pequeno, morava em uma pequena casa no interior de São Paulo. Morávamos minha mãe, eu e minha avó. Vovó adorava sair à tarde pelas ruas e conversar com os vizinhos, especialmente com uma senhora que morava na casa da frente, cujo muro era o reflexo do céu em dias abertos. Essa senhora já era bem velhinha e seus filhos, já bastante crescidos, viviam suas vidas na capital. Essa senhora já bem velhinha tinha também um pássaro verde e cantador. Um pássaro que ficava em cima do muro azul do portão da casa, falando com todos da cidade, quando não ficava em uma gaiolinha apertada no quintal. Entre meus doze e quatorze anos de idade, essa senhora morreu, demoliram sua casa, e seus filhos vieram de preto para o funeral e deixaram o papagaio com a minha família. E eu adorava aquele bicho, passava os dias ouvindo as histórias que ele contava...
Contou-me certa vez que uma das filhas daquela senhora tinha o levado para a cidade grande pra tomar vacina em um veterinário. E levava-o então a todos os lugares junto a ela, inclusive para a loja de aluguel de vestidos e trajes para festas que sustentava no meio de uma rua movimentada, onde praticamente também prestava serviço como amiga ou psicóloga, das mulheres que passavam que acabavam contando um pouco muito de suas vidas.
Contou-me de uma moça chamada Gabriela. A juventude se mostrava no seu rosto e em seu corpo, mas não mais em seus olhos. Gabriela chegou um dia de tarde lá na loja junto a um homem bonito, arrumado. Ela vestia roupas leves e soltinhas, uma blusinha verde e uma calça preta, bem fresco ao calor insuportável da rua. O rapaz, que de tão calado, nem mostrava os aparelhos que ainda seguravam seu sorriso, apenas escutava a mulher e entregava a uma funcionária da casa as roupas que tinham alugado.
-Muito obrigada e desculpava a demora pela devolução, quanto te devo? – agradecia Gabriela à filha da senhora da casa azul, que reparava no semblante triste da jovem.
-O que aconteceu, Gabi?
E o pássaro piava alto para o gato do vizinho que passava perto da janela do meu quarto, enquanto continuava a história.
Contou-me que enquanto a mulher procurava os cartões de crédito para fazer o pagamento, a mulher do lado de dentro do balcão interrompeu-a e a fez contar o que a fazia estar daquele jeito. E ela contou que o casamento tinha acontecido no fim de semana que se passara e que tinha sido a maior correria de sua vida. E o rapaz, ao seu lado, seu agora esposado namoro, mordia os lábios. E ela contou que descobrira que estavam grávidos, sim, os dois grávidos, e de dois, sim, de gêmeos, uma loucura né?
Animei-me e perguntei ao pássaro o porquê de tanta tristeza. Disse-lhe que era uma dádiva esperar a luz de crianças frutos de um amor. Ele piou que foi exatamente o que a mulher do balcão havia dito. Que Deus sabe o que faz. E que Gabriela respondeu à mulher, quase numa prece:
-Mas tinham que ser dois de uma vez? E uma lágrima caiu de seu olho como uma criança que cai na tentativa dos primeiros passos, depois de engatinhar.
-E o pai dela só ataca... – falou pela primeira vez o maridão.
-Mas é só no começo, depois que nasce, são só mimos e alegria – consolou a mulher, experiente pelo nascimento dos netos da senhora da casa azul.
-Sim, mas o plano de voltar para Londres acabou. Minha vida mudou totalmente, de um fim de semana pro outro. – As lágrimas já não se continham...
E eu disse ao papagaio que aquilo era muito mesquinho da parte dela, que os filhos agora teriam de ser o maior motivo da vida deles. E o animal advertiu-me para ser mais sensível. Adiantou um pouco a história como alguém que aperta o botão FF do videocassete.
Quando a mulher saiu da loja, um funcionário que estava sem muito trabalho, viera à dona da loja perguntar sobre a história.
-Eles são de Londres, senhora? – com muita curiosidade.
-Já te disse pra não me chamar de senhora, Bruno!
-Sim, senh... Quero dizer, tudo bem, Madalena - revelou o funcionário o nome que a senhora da casa azul tinha escolhido para uma de suas filhas.
-Ele é de Londres, eu acho. Eles se conheceram lá, pelo que ela falou da outra vez que veio, para alugar as roupas. Eles tinham planejado se casar aqui e voltar pra lá... – e se enrolava pra contar a história a Bruno, seu funcionário.
O papagaio ajudou, contornando a história pra mim. De forma resumida, Gabriela havia namorado durante cinco anos. Um daqueles amores de escola que passam de ano na faculdade, mas não conseguem se encaixar no mercado de trabalho. Depois de um ano do término, ainda sem esquecer seu antigo namoro, decidiu fazer um intercâmbio. Foi pra Inglaterra, onde conheceu Ricardo, o jovem de aparelhos prateados que sombreava a moça na loja de roupas e aonde quer que fossem. Apaixonaram-se, brigaram e se apaixonaram de novo durante um ano inteiro, na cidade cinza. Voltaram para o Brasil já noivos e planejavam, após uma lua de mel viajada e curtida ao máximo, regressar para o Velho Mundo e viver lá, dar continuidade no trabalho que tinham começado lá, no romance que tinham começado lá. Gabriela procurava na Terra da Rainha, a independência de sua metrópole, desejava deixar de ser colônia e fugir dos embargos tributários que monopolizavam sua liberdade, sua felicidade, o seu amor. Agora, com dois filhos pra cuidar, tornava-se atrelada a seus pais e seu país novamente, chorava de novo a saudade de um amor antigo, a angústia de uma lembrança ruim. Gabriela voltava para a antiga gaiola apertada, que agora parecia menor ainda tendo um homem e dois filhos pra dividir o espaço.

terça-feira, 9 de março de 2010

A Chave da Porta da Frente

-por Otávio Silva

A intimidade é uma porta.
Que você bate na cara de estranhos.
Para esconder nossos segredos mais profundos.
E atrás dessa porta, lá pro fundo, tem um quarto.
Que se abrem quatro portas.
A porta do armário,
Que guarda as esquisitices, as lembranças, as bagunças.
Guarda os restos do seu amor primário;
A porta do carro,
Que guarda o seu gosto musical
A sujeira matinal, o seu cheiro;
Tem a porta do banheiro,
Quando não importa a outra pessoa olhar;
E tem também a porta do lar,
Que se abre ao convite de um café, de um chá.
De um almoço, de um jantar,
De um carinho e um deitar
E até quem sabe dormir com os pés na cabeceira da sua cama,
Nesse quarto há uma torneira,
Que você abre pras pessoas que você ama
E que não se importam em te ver chorar.

segunda-feira, 1 de março de 2010

BBB 11

Vanessa era uma mulher bonita e bem sucedida. Sempre foi filhinha de papai e, aos seus 25 anos de idade, já podia dizer que havia viajado o mundo inteiro ao lado de seu recém marido. Era empresária e carregava nas costas a empresa que havia herdado de seu pai, junto com uma enorme fortuna. À primeira impressão, Vanessa se mostrava autoritária e seca, do tipo que se vê superior a todos ao seu redor.

Em uma quinta feira, Nessa (como era chamada pelos mais íntimos) vestiu seu terninho preto e seu scarpin de salto altíssimo, saindo, logo em seguida, em direção ao elevador junto com seu esposo Jorge, já que este a iria levar ao trabalho no dia do rodízio de seu carro. Os dois enquanto andavam pelo corredor encontraram Charlotte, sua vizinha de porta, vestida com saias estampadas compridas, sandálias marrom sujo e uma blusa branca surrada. Os outros vizinhos costumavam dizer que Charlotte era hippie, e até mesmo que não tomava banho. Vanessa não a admirava muito por isso.

Os três se cumprimentaram com um aceno de cabeça cordial, daqueles que as pessoas dão quando não sabem bem como lidar com a situação, e entraram no elevador que já se encontrava no andar. Quando entraram, se depararam com a senhora Christine, uma velhinha viúva que morava no andar de cima sozinha com seus três cachorros e dois gatos. Jorge costumava reclamar muito do barulho que os cachorros faziam correndo atrás dos gatos enquanto assistia ao noticiário, e Vanessa, para não escutar mais as histerias do marido, corria para o armário de produtos de limpeza pegar uma vassoura para cutucar o teto de sua casa, que por sua vez era o chão da casa de Christine. A atmosfera que já estava um pouco pesada entre os três primeiros se completou com a quarta integrante. “Que bela maneira de começar o dia”, pensou Nessa, olhando para Jorge com um olhar cúmplice e o odiando por ele desviar o olhar como se ela o estivesse envergonhando.

De repente, a luz do elevador começou a piscar, apagando e acendendo, e um certo tremor assustou os quatro passageiros daquele cubículo. Não demorou muito tempo para o elevador começar a engasgar e diminuir a velocidade lentamente até que parou completamente, acendendo apenas as luzes de emergência. “Você só pode estar brincando...” soltou Vanessa para ela mesma.

Jorge também não se sentia à vontade naquela situação. Pegou o celular do bolso e tentou ligar para a portaria, numa tentativa frustrada de fazer funcionar o aparelho de dentro do elevador, onde não tem sinal. Charlotte aproveitou o quadro para sentar e descansar, já que não havia dormido bem. E Christine, se consolava sozinha em meio aos quase resmungos e lamentações de uma reza. Os quatro vizinhos, antes separados por algumas vigas de concreto e paredes de tijolos, agora estavam todos no mesmo lugar, ao mesmo tempo, sem ter para onde fugir. Compartilhavam o mesmo quadrado da televisão da portaria que monitorava as câmeras de segurança do condomínio. Não sabiam eles, aquela câmera era agora o único meio de contato com o exterior do elevador, uma vez que o interfone do mesmo, como comunicado na semana anterior, se encontrava quebrado.

O visor marcava o quinto andar, justamente o andar da síndica, da qual o prédio todo desconfiava ter um caso secreto com Jorge. No mesmo andar, havia um garoto solteirão por quem a velhinha arrastava uma azinha, pedindo-o sempre para ajudá-la nas compras do sacolão e qualquer meio motivo era razão para chamá-lo ao seu apartamento: um canal da TV à cabo sem funcionar, uma lâmpada sem funcionamento ou uma barata que ziguezagueava pela cozinha.

Alheia a todos os moradores, e alheia também aos cochichos e fofocas corriqueiras, Charlotte reclamou da síndica no mesmo instante que viu que o elevador encontrava-se naquele andar, produzindo uma estranha reação de defesa por parte de Jorge, que resultou num posterior silêncio constrangedor. Logo em seguida, Vanessa incendiava aquele local com perguntas sobre a defesa de Jorge à síndica. Ao mesmo tempo, risinhos e conciliábulos eram percebidos por parte de Christine, que adorava ver um casal em discussão. Ao perceber isso, a mulher insultou a velhinha pela indiscrição e aproveitou para destilar impropérios sobre os gatos, cachorros e “aquele zoológico todo” que morava em seu apartamento.

Enquanto isso, na portaria, Zé e Antônio, respectivamente o zelador e o porteiro do turno diurno, se gargalhavam dos gestos que viam na câmera, chamando atenção de todos que por ali saíam ou entravam do condomínio. Aos poucos, empregados e prestadores de serviços que chegavam ao trabalho resolviam parar para dar uma espiadinha no que causava tanto alvoroço nos dois funcionários do prédio, antes de subirem para suas funções. Volta e meia, também paravam alguns moradores que, conhecendo os personagens da câmera, se divertiam mais ainda com o acontecimento. E aquilo tomou tanto o tempo de Zé e Antônio que eles até se esqueceram de chamar a empresa responsável pelo concerto do elevador. E em meio ao tumulto, Charlotte era vista de canto e continuava passiva diante das brigas de casais e de vizinhos e parecia quase surda quanto aos assuntos ali discutidos, e isso dava um ar ainda mais cômico à cena.

Passadas duas horas e meia da, naquele momento, já diagnosticada pane hidráulica no elevador, que agora já se via livre dos passageiros, tudo já estava encaminhado: a separação do feliz casal que vivia no apartamento 85, justificada por uma confissão de adultério do marido, a decisão de suicídio por parte da moradora do 95, que se via solitária no mundo e que, finalmente, percebera que seus cachorros, gatos e garotões que ela paquerava não substituíam o seu antigo esposo, nem se importavam com ela como o outro o fazia. Só o que não estava decidido, afinal, era onde que Charlotte enfim iria almoçar naquele dia: no restaurante indiano ou no por quilo do lado de casa?