O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






terça-feira, 27 de julho de 2010

Bobeira

-por Otávio Silva


Autocontrole. Como o próprio nome diz, é o controle de algo por si mesmo; a condução autônoma de seus próprios recursos. Vai de desencontro com aqueles que se defendem a administração da vida de acordo com os instintos e emoções, pois o autocontrole é, de forma sucinta, a prevalência da razão sobre a emoção. Mas, sobretudo, de uma razão filosófica e moral.

O homem é chamado de ser humano por carregar consigo duas partes que compõem sua essência: a do SER, que se refere ao corpo, ao biológico, instintivo e a HUMANA, que diz respeito à mente, à alma, à intuição. Esta parte, claramente, se responsabiliza pelo conhecimento e compreensão das coisas. Enquanto a primeira carrega os sentidos de forma mais primitiva possível: visão, audição, olfato, tato e paladar, que podem se relacionar de forma independente da razão pelas sensações: fome, sede, frio, quente, enfim, paixões outras que interferem demais no comportamento do homem contemporâneo.

Interfere no modo em que pessoas de uma maneira geral se deixam levar por sentimentos passageiros sem perceber o que os levam a tal ponto. Ou seja, as pessoas são controladas e submetidas a regimes de hierarquias corrompidas ou artificiais, sem ter noção disto. E essa verticalização forçada é resultante justamente dessa preferência humana por seu lado animal: os empregados são controlados por seus patrões, pois dependem do dinheiro que estes lhes oferecem para que possam ter o que comer, sem questionar se tal emprego é justamente aquilo que querem ou o que tem vocação para exercer.

Além disso, o autocontrole nos ajuda a alcançar objetivos e explorar vocações. Entre o prazer imediato e hedonista e o sucesso e a construção de felicidade, há uma grande distância. Para aquele, não se precisa de muito esforço e a realização é vazia e sem significado, abrindo espaço, inclusive, para ações de má-fé para com outros e buscas rápidas e oportunas de conseguir o que se quer. Já para o sucesso, é necessário uma motivação e um esforço que são mantidos pelo foco e pela concentração que o autocontrole traz, no sentido de deixar de lado prazeres insignificantes em busca de algo maior, mas conquistado apenas em longo prazo.

Eis que a filosofia moral se faz importante. As coisas de bem são de bem não porque Deus ou alguém nos diz que são. Justamente por serem boas, que as coisas boas são aconselhadas. Por isso, parece que nos é intrínseco distinguir o bem do mal, o certo do errado. Assim, se todos conseguíssemos deixar nossos vícios emocionais animalescos como a ganância, o ódio, a presunção de lado, poderíamos até quem sabe viver numa anarquia, em que todos seriam controlados pela própria razão e honestidade...

Chegando ao final do meu texto, este me parece mais um conto de fadas do que qualquer outra coisa. Como a anarquia até hoje nunca existiu e é tratada como algo impossível ou utópico...


"Pode avisar, podem avisar:

Invente uma doença que me
Deixe em casa pra sonhar!

[...]

Me deixa que hoje eu to de
Bobeira, bobeira

[...]

...Hoje eu desafio o mundo
Sem sair da minha casa.
Hoje eu sou um homem mais sincero
E mais justo comigo"

Me Deixa

O Rappa

(Composição: Marcelo Yuka)

domingo, 25 de julho de 2010

Minha Culpa

-por Otávio Silva


 

A culpa é relacionada à responsabilidade, ao erro, ao fracasso. Outras vezes, diz respeito ao pecaminoso ou imoral. Já ouvi dizer que a culpa é um saco! Um saco cheio de tijolos que se carrega sobre as costas e que não vale à pena carregar tal fardo ao longo da vida.

Acho que pra isso inventaram a 'desculpa', o perdão. O pedido e a concessão. Como um ato, ocasionalmente até divino, para livrar alguém daquele saco, num alívio.

Tijolos são utilizados para construírem algo. Se você deixar um saco com os seus por aí, como ficará sua obra?

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Palavramento

-por Otávio Silva


 

Dizem que uma imagem vale

Mais do que mil palavras

Heresia. Não é verdade.

Tente dizer isso sem uma única palavra.

...


 

Em contrapartida, um só conceito

E mais de mil imagens podem estar em formação

No seu pensamento

Através da imaginação


 

Ler e falar, escrever e ouvir

São sinônimos de pensar

Suas letras representam o refletir

Depois de se materializar

 

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Máquina de Fazer Vilão

-por Otávio Silva


 

    A frustração é como uma promessa não cumprida. Deixa-te na mão. É como o sangue que saiu do coração em direção ao corpo com a promessa de voltar, mas não voltou. É como a percepção no último dia das tão esperadas férias que elas não foram aproveitadas. Não tem para onde fugir. Não tem para onde correr. No final, somos só nós dois: eu e você, frustração. De mãos dadas. Olhos nos olhos. Boca na boca. Sinto-lhe inteira sobre mim, mesmo antes de me tocar. Flutuante no ar, literalmente. Expande-se no ar, como um gás exotérmico, liberando seu calor para todo o ambiente. Banha o quarto. E me afoga. Lentamente. Muito. Muito lentamente. Como se a cada instante de tempo, o espaço no relógio não acompanhasse. Afoga... Sufoca... Mas se esquece de me matar. Tortura as minhas lembranças. Ataca aos meus desejos. Sem dó, nem pena, coração ou compaixão, nem nada. É pior que o arrependimento e que a saudade. É a sensação de que fez tudo que podia e não conseguiu. É o sentimento de falta daquilo que nunca teve. A ideia de que não mudaria nada se tivesse a oportunidade de fazer de novo. E do mesmo modo como me deixou a um fio dos objetivos, me deixa a um fio da morte agora, a um fio de cabelo de um beijo. E ela fica aqui, bem a minha frente, todos os dias, os dias todos. Não me pede perdão, não me deixa e não se apaga...

    O melhor remédio? Vingança. Frustre a frustração...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Tempestade em Copos de Água e Café

-por Otávio Silva


Casaram-se lá pro mês de outubro do ano passado, na primavera. Depois de cinco anos namorando, era tempo já. Terminaram a faculdade, arrumaram emprego. Ela não agüentava mais a pressão da família pra saber quando seria o casório, além de estar curiosa e ansiosa pra conhecer o 'mundo de casado'. Ele estava cansado de brincar com a vida, queria assumir perante toda a sociedade uma vida séria, se desvencilhar do cordão umbilical da mãe e do dinheiro do pai, de uma vez por todas. Ambos se decepcionaram.

Mal chegamos a maio e tive de recebê-los em meu escritório. Trabalho como advogado civil em casos de família e, semana passada, eles me procuraram para entrar com pedido de separação e divórcio. Como instruído nos anos de faculdade, indaguei-os sobre os motivos que os traziam até mim para uma tentativa de reconciliação ou acordo. E bem, eu aconselharia os jovens formandos e aspirantes à profissão, de não tentarem isso. Ou senão, terão que colocar um divã no meio do seu escritório...

Sentido-os um pouco nervosos, servi-lhes dois copos cheios de água para se acalmarem. Nenhum dos dois sequer tocou seu próprio copo. Sentei-me na ponta da mesa, como se estivesse entre eles. O lábio inferior dela era constantemente atacado pelos dentes. Ele, apesar do ar frio e calmo, não conseguia abrir as sobrancelhas, nem direcionar os olhos a um lugar só.

O clima na sala não era tenso. Era enevoado por pólvora e foi só eu iniciar as primeiras palavras, para os dois começarem a explodir seus sentimentos e emoções que ainda nutriam um pelo outro. Acusações, reclamações, reivindicações, uma série de ações que impressionantemente nos levou ao primeiro dia de cônjuges morando sob o mesmo teto.

Após ele conseguir um belo e estável emprego, se casaram na mesma igrejinha que os pais dela. Após viajarem por quase três semanas por quase a Europa inteira em uma maravilhosa lua-de-mel, compraram uma casinha, com a ajuda da família e amigos, para morarem juntos. E depois de toda bagunça e da mudança, lá se foram eles. Como relatado por ela e confirmado, por vezes até complementado, por ele, o primeiro dia transcorreu da seguinte maneira, que eu penso que resume bem o relacionamento em questão como um todo e muitos outros...

Acordaram juntos de manhã, se demoraram um pouco na cama. Ela foi tomar banho enquanto ele tinha seus cinco minutinhos mais. Quando ela saiu do banheiro, ele entrou. Como era o primeiro dia deles morando juntos, ela resolveu colocar a toalha de linho branca que sua mãe dera para eles como presente de casamento. Assim como era tradição da família dela, as mulheres se casarem naquela igrejinha de bairro, era também a mãe dar uma toalha de linho branca quando a filha se casasse.

Ela, que nunca fizera nenhuma tarefa doméstica em sua casa e jurara de pés juntos para a família inteira durante toda adolescência que não as faria para marido nenhum, agora já tinha posto a mesa e preparado o café. E ele se juntou a ela, sentando ao seu lado, selando-lhe um beijo e amarrando a gravata, ao mesmo tempo. Olhou no relógio e descobriu-se mais atrasado do que pensara e por isso, ignorou os pães, frutas, frios e tudo que havia na mesa, colocando apenas um pouco de café na xícara. Já levantando-se e despedindo-se da querida esposa para ir trabalhar e ganhar dinheiro para a casa, ele deixou cair algumas gotas em sua camisa que vestia e na toalha.

Eu agora me sentia um celibatário ouvindo-a confessar sentir-se nervosíssima com tudo aquilo, para a surpresa do seu ainda marido. Os dois concordaram que naquele dia, ela não demonstrou nenhuma irritação. E ela defendeu-se dizendo que querendo ser uma boa esposa e a fim de não começar a desgastar a relação, relevou aquilo tudo e se propôs imediatamente a lavar a camisa e a toalha de mesa.

E enquanto eles falavam e desabafavam, os copos deles iam se esvaziando gradativamente. Centímetro a centímetro, de vagarosamente, sem eu perceber.

Bom, ele trocou a camisa, e foi trabalhar. E ela, ficou em casa. A toalha de linho ficou manchada e apesar de sua dificuldade em manusear os aparelhos todos de limpeza, secagem e passagem da camisa, esta não ficou com a mancha do café e então, foi devolvê-la ao guarda-roupa do marido, quando se deparou com a toalha de banho dele molhada e jogada em cima da cama. Confessou-me novamente a sua revolta, mas novamente, diante da surpresa dele no escritório, admitiu ter engolido seu sentimento, relevado mais uma vez o fato e ter simplesmente, devolvido a toalha a seu devido lugar.

Neste momento, sem eu ao menos notar ela fazer alguma pausa para as goladas, vi o copo dela praticamente vazio. Restava pouco para acabar quando o esposo, que apenas completava as falas dela, talvez por sentir-se vítima diante do já exposto e decidiu tornar-se primeira pessoa da história.

Na volta do trabalho, o marido, já cansado e faminto, fez-se de bom moço, e engoliu saliva para matar a fome, enquanto juntou-se à sua querida esposa no sofá da sala em frente à TV, por algum tempo. Após namorarem e se curtirem um pouco, foram à mesa, onde ela serviu um bife à parmegiana, que tentara aprender naquela tarde telefonando para a sogra. Ao experimentá-lo, para o susto dela, disse ter perguntado a si mesmo se fora banhado em água do mar, de tão salgado. Mas não fez menção nenhuma ao desgostoso sabor da comida, para não desencorajá-la na cozinha ou magoá-la.

Engraçado como notei que depois que ele falou, o copo dele havia esvaziado um pouco. E continuou...

Chegando ao armário, uma camisa no meio das outras o chamou atenção. Tinha uma marca de ferro de passar. Bem de leve, quase imperceptível talvez para alguém que não a usaria. Mas não para ele. Mas não pra ela, ele reclamou ou chiou. Simplesmente, não a usou mais. Relevou. Engoliu. Eu só não o vi engolir nada de água e para a minha admiração, seu copo já estava quase vazio.

Este primeiro dia retratado por eles foi parecido com o quarto, e também com o décimo. O vigésimo teve algo disso novamente e eu não sabia quando nem como pedir para eles pararem. Não sabia mais o que fazer. Não sabia se ali era o lugar para aquilo e ao mesmo tempo, sentia pena daqueles dois. Era óbvio o quanto eles ainda se gostavam desabafando todas as lembranças e sentimentos.

Não sabia por aonde ir. Sou advogado, não psicólogo ou conselheiro amoroso. Dizem que a justiça é cega, e o amor também. Às vezes, procuramos a melhor coisa a se fazer sem olhar a quem, pela justiça. E em outras, procuramos a melhor pessoa pra fazer o impossível, por amor. Quem é cego, não olha. Quem não olha, não vê. Quem não vê, não assiste. Quem não assiste, não atende. E atender é justamente aquilo que as pessoas procuram umas nas outras. Seja em contratos que atendam às necessidades comerciais de uma empresa, ou em compromissos amorosos que atendam às necessidades emotivas e carnais de cada um. E quem não vê, pelos outros sentidos consegue reconhecer algo, porque reconhecer é saber que é o objeto, mas não o conhece, pois conhecer é saber como ele é e sem um dos sentidos já se tem essa percepção afetada.

E assim, o que fiz foi encaminhá-los a um terapeuta amigo meu, da época de colégio pra ver se conseguiam fazer esvaziar a paciência deles, até a última gota. Seja de café, ou de água.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Only When I Sleep

- por Camilla Lopes

Os seus ombros se esbarraram logo na escada rolante que descia para a plataforma do metrô. Foi quando instantaneamente notaram um a presença do outro. Não a presença física, porque isso era quase impossível não notar, com toda aquela gente se empurrando, lutando por um lugar mais próximo da porta do vagão. Era um tipo de presença que destacava no meio da multidão a camisa xadrez azul e preta que ela estava vestindo, de um jeito que ele não conseguia deixar de repousar o olhar sobre ela. E ela, antes distraída com a música que saia de seus fones de ouvido, passava a ritmar os passos dele de acordo com a melodia. Os dois pararam lado a lado na plataforma, talvez propositalmente. E quando o primeiro trem chegou, ambos foram empurrados para dentro do vagão. Ele acabou de costas para a porta de entrada, e ela logo atrás, tão próxima que podia encostar a ponta de seu nariz na nuca dele. O perfume era tentador de mais, o que chamou sua atenção, pois raramente gostava tanto assim de uma fragrância. Ele, sem conseguir vê-la, se perguntava em que lugar ela poderia estar. Resolveu, então, virar discretamente, analisando as pessoas em volta como quem não quer nada, procurando o tal xadrez azul e preto. Completada a volta, ele se encontrou de frente a ela, e não teve como evitar a troca de olhares. Os olhos dele eram pretos, fundos, e ela queria saber o que se passava por trás deles. Ele se impressionou com os olhos verdes dela, passavam um ar de inocência indescritível. Ela não conseguiria se mexer, nem se quisesse. E eles estavam tão perto. Perto o suficiente para parecer que só existiam os dois naquele trem, não tão perto para que eles não desejassem ser um pouco mais empurrados pela multidão, se aproximarem mais. E se ela fosse embora na próxima estação? Ele nunca mais a veria? Isso não parecia uma opção. Ela tocou na mão dele, tentando parecer acidental. Precisava sentir a sua pele, era como se algo nele a estivesse atraindo. Começou a fantasiar cenas em sua cabeça de acordo, novamente, com o som que tocava em seus ouvidos. Será que ele também estava pensando algo do tipo? Ou ela era só uma menina boba que pensava em coisas que não aconteciam na vida real? Mas o coração dele bateu três vezes mais forte. Ela estava perto o bastante para perceber isso. Bom, sua respiração ofegante ele não conseguia mais esconder. Nem ela. Ainda com os olhos fixos um no outro, eles começaram a aproximar seus rostos, quase involuntariamente. E como num alívio, seus lábios se tocaram.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Mesmo

-por Otávio Silva


 

Ela queria mudar o mundo

Ser alguém

Sair da mesmice,

Erradicar a fome

Acabar com as guerras e corrupção

Fora Sarney, Dunga, Galvão

Cara pintada, nariz de palhaça

Agora e sempre...


 

Nem sempre.

Em uma época, ela chorou, gritou, sorriu...

Esperneou, gemeu, perdeu o sono...

Por ele.

Ele que era um ninguém, mergulhado no sistema

E ainda vivia num esquema muito bom

Absorto na alienação:

Escola, cinema,

Clube, televisão.


 

E hoje ela deixou tudo de lado

Por eles.

Eles que eram tão iguais, mesmo que ninguém achasse

Mesma comida preferida, mesma cor do sorriso,

Mesmo sabor do beijo, mesma sobrancelha levantada

Mesmo amantes, mesmo!

Era.

Mônica tenta viver a vide deles

Ouve as músicas deles, curte os filhos deles

Assiste aos filmes deles, lê as cartas de adolescentes deles

Para que o "nós" deles possa viver para sempre

Mesmo...

Com a morte de Eduardo.

domingo, 4 de julho de 2010

Instável Relação

-por Otávio Silva


Não se dão bem,

Um ao outro se sufocam.

Enquanto ele não vem,

É com ela que os homens se deitam.


Porém, pessoas de qualquer idade

Perturbadas são

Desde o início da humanidade

Pelos frutos dessa relação,


Que ocupam nossa mente.

São creditados às vitórias;

Não raramente

Movem os cursos de nossas histórias.


Essa família tem muita vaidade,

Querem nossa atenção noturna.

De carneiros, o pai tem a cumplicidade,

Para se livrar dessa esposa soturna.


Alguns precisam do apoio marital

Outros carecem de uma visita dela

Não se trata de opção sexual

Mas os filhos tornam sua vida bela


A faculdade de pensar antes de dormir, é a maior inimiga do sono. Ao mesmo tempo, é da união destes oponentes que nascem os sonhos.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

...Numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar...

-por Otávio Silva


 

    Era sonhador. Apaixonava-se fácil, acreditava em amores da primeira até a última vista. Mas durante a semana, vestia a fantasia de trabalhador sério. Herdou dos pais um apertamento em São Paulo, daqueles "de porta pros fundos". Morava sozinho e prestava serviços a uma boa empresa de publicidade. Reclamava aos deuses, e aos orixás às vezes, quando seu chefe mandava-o entregar trabalhos para um dos grandes clientes na segunda-feira de manhã. Assim, não conseguia dar às suas receitas mensais o fim que elas mereciam: o fim da semana.

    Muito simpático, de sorriso fácil e de fácil abertura, chegava a todas as rodinhas em churrascos e bares com os amigos. Sorria sempre que conhecia alguém, pois acreditava que nunca teria uma segunda chance para causar uma boa impressão. Também por isso, vaidoso que era, habituou-se a usar os óculos de grau somente no ambiente laboral. Contrariava as sugestões oftalmológicas e nem na rua os usava. E andava muito na rua.

    Como herdara a moradia e o trabalho lhe rendia apenas os finais de semana, o transporte que usava era o público. Não tinha dinheiro para manter um carro. Logo, com o dinheiro da empresa, fazia duas baldeações no metrô e pegava mais um ônibus para ir ao escritório. Além de, um ônibus e, duas baldeações para voltar. Já decorara o caminho, não dependia mais de identificar os borrões e contornos das placas e indicações.

    Ele reclamava que a solidão o perseguia. Mas ele não percebeu que ele não deixava a solidão ir embora.

    Todos os dias, nosso personagem vai a pé de casa até o metrô. No mesmo horário. Todos os dias, ele passa na catraca, desce as escadas e espera o metrô chegar. Com uma margem de um ou dois minutos para mais ou para menos, o vagão chega à sua estação. Faz a baldeação na linha verde e segue em direção às estações da Av. Paulista. De lá, pega um ônibus que passa de dez em dez que desce a Bela Cintra, onde desce no terceiro ponto, imediatamente antes do posto de gasolina. Chega pontualmente, às 8h no seu trabalho. Todos os dias. Se o tempo está contra ele, ele deixa as calçadas e escadas pra trás em passos rápidos.

    Pacato trabalhador, morador solitário nunca se deu conta que milhares de pessoas fazem a mesma trajetória que ele. Em uma cidade como São Paulo, você anda num abismo de frieza e intimidação. Só de olhar pros lados, pode até cair. Do seu lado, passa todos os dias, uma linda moça dos cabelos dourados, que gosta dos mesmos filmes que ele. Um pouco mais apressado, alternando casacos marrons e pretos em dias de frio, e camisas coloridas no calor, um senhor de cabelos grisalhos trabalha em uma empresa concorrente a dele, e precisa de alguém justamente como ele. Sempre atrasado, corre um moleque que ouve todos os dias a discografia inteira daquela banda antiga que nem existe mais. No metrô, trabalha uma mulher que é prima de uma amiga de infância de sua mãe que morreu e não deixou nenhuma lembrança.

    Todos os dias, ele deixa escapar tantas oportunidades que nem poderia contar. Todos os dias ele divide o banco com um possível futuro chefe, dá passagem à possíveis mulheres de sua vida. Tudo isso por falta de um par de óculos. Nós buscamos, no nosso dia a dia, condições de nos encaixarmos na rodinha do churrasco do final de semana com pessoas que consideramos especiais. E deixamos de lado condições especiais de pessoas comuns que nos são apresentadas todos os dias. Ponha os óculos, de vez em quando.