O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






quinta-feira, 27 de maio de 2010

A Venda

-por Otávio Silva


 

    -Escute aqui. A partir de hoje, a única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

    E eu instantaneamente, discordei dela.

Xxx

A discussão era travada no primeiro vagão de um trem da CPTM. Nessas linhas, os vagões parecem ser mais largos que os de metrô, pois a disposição dos assentos nos passa essa impressão. Ao longo do trem, os bancos são dispostos lado a lado encostados às paredes laterais e direcionados à outra parede, em duas filas até que se encerram no posicionamento convencional de veículos e automóveis com os bancos perpendicularmente virados para frente ou para os fundos. Torna mais fácil agora remontar a cena:

Entrei no vagão tranquilamente, o Sol já se pusera, e, logo, o trânsito de pessoas era mais tranquilo realmente. Alguns bancos vazios e me sentei ao lado de um casal: um homem e uma mulher. Qual a relação entre eles? Não sei. Como estava essa relação? Conturbada, com certeza. Havia alguns sacos e sacolas no chão a frente deles e vários questionamentos por parte dela. E inversamente, da boca dele não saíam muitas respostas.

Tentando fingir que não prestava atenção à conversa, olhei para as pessoas do outro lado. Todas, indiscretamente, observavam o imbróglio. Ela reclamava sobre uma venda, feita por ele, da televisão da sua casa. Ele se defendia esquivando ao máximo do assunto e pedia desculpas a todo o momento. Visivelmente, os dois ou não percebiam, ou não se importavam com a atenção que chamavam.

Apesar do notório desentendimento, os dois estavam muito serenos. Não alteavam muito o tom de voz, tampouco gesticulavam em demasia. Àquela hora, mesmo com a noite exposta, o calor tomava conta do tempo e o abafamento do trem era evidente no leve suor no rosto dos dois, provocado pela estrutura do trem, que não apresenta uma saída sequer de ar. Enfim, a janela um pouco condensada atrás deles contornava-os perfeitamente.

O silêncio dos outros passageiros era paroquial. Assistiam ao vivo, a cores e em 3D, literalmente, à novela da vida real. Ela, desoladamente, lembrava os erros dele do passado, as promessas não cumpridas de mudança de comportamento e os displicentes pedidos de desculpas anteriores. E ele insistia que não fizera nada daquilo por maldade. E mesmo (ou até mesmo) por apresentar dificuldades na comunicabilidade, era expresso nos seus olhos o arrependimento.

As pessoas nem piscavam. Algumas delas tiravam repetidamente com uma das mãos biscoitos ou balas de saquinhos segurados com a outra. Um até desligou o celular rapidamente quando este tocou. Eu procurava me atentar ao motivo da briga. Procurava não virar o pescoço para eles, ao mesmo tempo em que compreendia algumas idéias, que, pelo jeito, já estavam sendo discutidas muito antes de eu entrar. E pelo que pude notar, o problema central era mesmo a venda da televisão. Ela queria o ter feito antes, e ele não autorizava. E agora, ele a vendera sem o mínimo consentimento dela e, ainda por cima, já havia gastado o dinheiro ganho e não sabia ao menos explicar com o quê.

-O aparelho era velho já!

Mas ele talvez não desse conta da importância dos atores e apresentadores na vida da mulher. Eles dois eram para todos no trem o que a TV significava pra ela: uma curiosidade pela vida alheia, uma troca dos próprios problemas pela preocupação no dos outros, a fuga da realidade, o escapismo, uma distração, um passatempo feliz...

Meu itinerário na CPTM abrange apenas quatro estações, mas pelo ritmo do trem, a viagem parece sempre mais longa do que realmente a é. Momentos antes de a minha estação chegar foi que eu ouvi:

-... A única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

E eu não perdi a chance de completar:

- Além da morte, minha senhora – disse já me levantando pra sair – A morte é a única certeza desde que nascemos.

Nisto, eles pararam de brigar, como se alguém invadisse o set de filmagem. Ainda bem que a porta já abrira, mas já de fora, dava para perceber as pessoas ao redor atônitas e incrédulas por eu ter, apenas, apertado o botão de desligar a TV...

5 comentários:

  1. Eu já te falei que o meu "Eu lírico" devia chamar Otávio!ahha

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  2. Imbróglio! Essa é nova. E o significado é bom resumo do conto. Muito bom.

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  3. Ah, deixa eu me identificar propriamente: Marina Silva. P.S. Não tenho twitter, só estava olhando de curiosidade ^^

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  4. putz, querido, quantas vezes eu já não fui o espetáculo nos metrôs de são paulo...hahaha
    Belissimamente escrito. =D

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  5. É engraçado como é quase inevitável nestes locais se tornar um espectador não?! Mas pior é quando percebemos que nós somos o espetáculo. Hahah! Gostei muito do texto meu anjo! Se superando a cada texto!! Parabéns! Beeijo

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