O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






quinta-feira, 27 de maio de 2010

A Venda

-por Otávio Silva


 

    -Escute aqui. A partir de hoje, a única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

    E eu instantaneamente, discordei dela.

Xxx

A discussão era travada no primeiro vagão de um trem da CPTM. Nessas linhas, os vagões parecem ser mais largos que os de metrô, pois a disposição dos assentos nos passa essa impressão. Ao longo do trem, os bancos são dispostos lado a lado encostados às paredes laterais e direcionados à outra parede, em duas filas até que se encerram no posicionamento convencional de veículos e automóveis com os bancos perpendicularmente virados para frente ou para os fundos. Torna mais fácil agora remontar a cena:

Entrei no vagão tranquilamente, o Sol já se pusera, e, logo, o trânsito de pessoas era mais tranquilo realmente. Alguns bancos vazios e me sentei ao lado de um casal: um homem e uma mulher. Qual a relação entre eles? Não sei. Como estava essa relação? Conturbada, com certeza. Havia alguns sacos e sacolas no chão a frente deles e vários questionamentos por parte dela. E inversamente, da boca dele não saíam muitas respostas.

Tentando fingir que não prestava atenção à conversa, olhei para as pessoas do outro lado. Todas, indiscretamente, observavam o imbróglio. Ela reclamava sobre uma venda, feita por ele, da televisão da sua casa. Ele se defendia esquivando ao máximo do assunto e pedia desculpas a todo o momento. Visivelmente, os dois ou não percebiam, ou não se importavam com a atenção que chamavam.

Apesar do notório desentendimento, os dois estavam muito serenos. Não alteavam muito o tom de voz, tampouco gesticulavam em demasia. Àquela hora, mesmo com a noite exposta, o calor tomava conta do tempo e o abafamento do trem era evidente no leve suor no rosto dos dois, provocado pela estrutura do trem, que não apresenta uma saída sequer de ar. Enfim, a janela um pouco condensada atrás deles contornava-os perfeitamente.

O silêncio dos outros passageiros era paroquial. Assistiam ao vivo, a cores e em 3D, literalmente, à novela da vida real. Ela, desoladamente, lembrava os erros dele do passado, as promessas não cumpridas de mudança de comportamento e os displicentes pedidos de desculpas anteriores. E ele insistia que não fizera nada daquilo por maldade. E mesmo (ou até mesmo) por apresentar dificuldades na comunicabilidade, era expresso nos seus olhos o arrependimento.

As pessoas nem piscavam. Algumas delas tiravam repetidamente com uma das mãos biscoitos ou balas de saquinhos segurados com a outra. Um até desligou o celular rapidamente quando este tocou. Eu procurava me atentar ao motivo da briga. Procurava não virar o pescoço para eles, ao mesmo tempo em que compreendia algumas idéias, que, pelo jeito, já estavam sendo discutidas muito antes de eu entrar. E pelo que pude notar, o problema central era mesmo a venda da televisão. Ela queria o ter feito antes, e ele não autorizava. E agora, ele a vendera sem o mínimo consentimento dela e, ainda por cima, já havia gastado o dinheiro ganho e não sabia ao menos explicar com o quê.

-O aparelho era velho já!

Mas ele talvez não desse conta da importância dos atores e apresentadores na vida da mulher. Eles dois eram para todos no trem o que a TV significava pra ela: uma curiosidade pela vida alheia, uma troca dos próprios problemas pela preocupação no dos outros, a fuga da realidade, o escapismo, uma distração, um passatempo feliz...

Meu itinerário na CPTM abrange apenas quatro estações, mas pelo ritmo do trem, a viagem parece sempre mais longa do que realmente a é. Momentos antes de a minha estação chegar foi que eu ouvi:

-... A única certeza que você tem na sua vida é que você não pode mais contar comigo...

E eu não perdi a chance de completar:

- Além da morte, minha senhora – disse já me levantando pra sair – A morte é a única certeza desde que nascemos.

Nisto, eles pararam de brigar, como se alguém invadisse o set de filmagem. Ainda bem que a porta já abrira, mas já de fora, dava para perceber as pessoas ao redor atônitas e incrédulas por eu ter, apenas, apertado o botão de desligar a TV...

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Sonho e o Sono da Razão Produzem Monstros





-por Otávio Silva








Pelo dicionário; razão é a disposição intrínseca do ser humano de conhecer, pelo espírito; de distinguir as idéias das coisas. Para a filosofia, é o objeto de estudo, bem como seus limites. Para Goya, é como um gato, tal qual o pintado no canto direito da obra. É, um gato e concordo totalmente com ele.




O título de sua pintura, datada do século 17 (mais fácil que algarismos romanos, eu reconheço que tenho dificuldades com eles), é El Sueño de La Razon Produce Monstruos, o qual eu me permiti fazer uma ampliação de seu sentido. Literalmente falando, a sua tradução é "o sonho da razão produz monstros", simplesmente. Mas vou tentar explicar o porquê do título do meu post.




Em um primeiro momento, é bom lembrar que a época em que a obra foi feita era dotada de um célebre contraste entre opostos. Luz e sombra, razão e emoção, material e abstrato, ciência e religião. E creio eu que Goya conseguiu, não sei se intencionalmente, de uma forma brilhante abranger tal oposição e ao mesmo tempo, acabar com ela.




Vemos na imagem, uma diferença entre o primeiro plano do quadro colorido e o fundo escuro, sem coloração definida ou significante. É o primeiro sintoma de sua época: o contraste entre a presença e ausência de cor é evidência da presença ou não da luz, uma vez que esta é condicional obrigatória para visualizarmos ou não as tonalidades.




Para os humanos, poucas são as condições necessárias para que os cinco sentidos aflorem e explorem o mundo exterior. Para outros animais, não é bem assim. Goya representou em seu quadro a coruja e o morcego, dois seres deficitários do ponto de vista da acepção do mundo externo. A coruja enxerga de noite, mas não de dia. E o morcego, tem audição aguda, mas já traz no nome a sua carência: é cego.




Parecem-nos evidentes algumas conclusões, então. Naquele contexto, reinava o iluminismo, corrente filosófica que pregava o racionalismo, o uso da razão como forma de iluminar a Idade das Trevas, dominado pela Igreja e suas explicações religiosas e dogmáticas para o mundo, nos séculos anteriores. Dessa forma, a ausência ou presença de luz representada pelas cores na pintura, comparam a idéia de luz ou sombra que o mundo fora dividido na época. E ao mesmo tempo, as deficiências dos animais retratados correspondentes à percepção, no comparecimento ou na falta de luz (razão) são respectivamente, o hiper-racionalismo e o irracionalismo, da Ciência e da Igreja.




Ficou faltando explicar a ampliação do título. Considero o sonho e o sono nocivos, simultaneamente. Isto, pois enquanto o primeiro é a extrapolação, os desejos e fins; o outro é a falta de vigilância e cuidado. Ou seja, acreditar estar puramente na razão – a Ciência, o hiper-racionalismo, a coruja, a luz – ou na religião – a Igreja, os dogmas irracionais, a emoção, o morcego, a sombra – a verdade das coisas, o sentido da vida, é estar cego, surdo ou incapaz para alguns aspectos.




Não que aqueles que tenham tais falhas de acepção não consigam sobreviver no nosso mundo. Claro que conseguem, mas tem dificuldades. Portanto, é preciso que sejamos atentos como um gato. Este ouve tudo e tem uma visão tanto noturna quanto diurna. Sabe dormir bem e descansar, mas também sabe estar acordado e vigilante. Sabe relacionar-se com o seu oposto, sem arrogância, como o faz seu primo selvagem, o tigre, e sem servilismo, como o faz o seu inimigo doméstico, o cachorro. Foi a alegoria que Goya achou para descrever essa simbiose de fé e razão e que racha com aquela visão dualística do mundo. É o ponto de equilíbrio, a justa medida, a mediana, o meio centro, o ponto médio etc. Como descreveria Aristóteles, mas isso já é conversa pra outro bar...




Bibliografia:




http://fotolog.terra.com.br/oza




http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://peregrinacultural.files.wordpress.com/2009/11/goyaosonodarazaoproduzmonstros.jpg&imgrefurl=http://peregrinacultural.wordpress.com/2009/11/23/papa-livros-viva-chama-de-tracy-chevalier/&usg=__ClzEc5Vvq7hZCy3QZOzDcZh4VWU=&h=522&w=350&sz=91&hl=pt-BR&start=1&sig2=N_A72oJ-iTHubcVJyWIZjA&itbs=1&tbnid=lOTAoTKxucDeNM:&tbnh=131&tbnw=88&prev=/images%3Fq%3Dgoya%2Bo%2Bsono%2Bda%2Braz%25C3%25A3o%2Bproduz%2Bmonstros%26hl%3Dpt-BR%26gbv%3D2%26tbs%3Disch:1&ei=6TLXS52dFoKdlge0lJj7Aw




http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_de_Goya




http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Saturno_devorando_a_sus_hijos.jpg




http://pt.wikipedia.org/wiki/Saturno_devorando_a_un_hijo




História da Arte, Graça Proença. Editora Ática

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Dois Fãs, Um Par


-por Otávio Silva

 

    Nós dois estávamos deitados na cama do quarto dela. Eu olhava pra ela, distraidamente. E ela, falava comigo:
    -Você também consegue?
    E eu nem respondia. Observava um passarinho de pelúcia que, entre a escrivaninha e a porta, não deixava esta fechar, para ouvirmos quando chegasse alguém na casa. O irmão dela era ciumento e podia chegar sem avisar. Embora eu fosse maior que ele, uma briga não estava nos meus planos.
    Eu estava de costas para a parede e, enquanto ela me olhava e não parava de falar, na borda da cama, observava por cima do ombro dela aquele quarto de menininha ainda. Várias caixinhas e gavetas que deviam guardar um milhão de histórias e lembranças, brincos e colares, pulseiras e elásticos de cabelo.
    -... Porque a Bru não podia ter feito isso com o Lu...
    De vez em quando eu demonstrava algum interesse no que ela dizia e algumas daquelas palavras realmente entravam na minha cabeça. O que seria útil caso ela resolvesse desafiar minha atenção, posteriormente, como já havia feito em outras oportunidades.
    -... Tava pensando em ir na festa da Gi, sábado e...
    E eu concordava ou não, algumas vezes, pra dar mais credibilidade à minha curiosidade pela conversa. Momentaneamente, meus pensamentos giravam de novo com o quarto e eu pensava o que estaria fazendo ali? Digo, eu gostava dela. Realmente gostava, mas... Não sei, será que bastava? Será que isso tudo é um simples passatempo? Pois eu já havia passado muito tempo com ela e o tempo ainda não tinha passado. O tempo ainda não tinha chegado.
    Eu estava cansado. Não só por estar se aproximando do final de mais um dia longo e ter que me contentar em ver apenas uma frestinha do por do Sol, através dos vários prédios que pintavam um quadro, cuja moldura era a janela do quarto dela. Cansado também de ter que fingir que queria ouvir sobre as futilidades dela ao passo que ela nem fingia ter cuidado com as minhas necessidades... Será que eu ainda gosto dela?
    Assim que essa pergunta me veio à mente, percebi que ela já não falava mais e só me olhava, com um sorriso torto pra direita, como se já estivesse esperando há um tempo:
    -Você ainda não respondeu.
    E eu pensei desesperado se eu teria falado aquilo em voz alta.
    -Não respondi o quê? Respondi, virando os olhos, como se pudesse virar também o foco da conversa.
    -Se você também consegue se ver nos meus olhos, como eu me vejo nos seus.
    Nunca tinha notado. Quando procurei os olhos dela, respondi alegre e instintivamente:
    -Consigo!

terça-feira, 18 de maio de 2010

My Heart Is Yours

- por Camilla Lopes

“Por favor, de novo não”, pensou a pequenina, já correndo em direção aos gritos que vinham do andar de baixo. Ela percorreu o corredor em seus passinhos curtos e chegou até o começo da escada, de onde conseguia ver os dois frente à porta de entrada. Meio escondida, ela acompanhou cada lágrima que delineava o rosto de sua mãe, e aquilo doía tanto que se sentou, encolhendo-se o máximo que podia. Colocou o rosto por entre as pernas e pediu baixinho para que tudo aquilo acabasse. Uma batida de porta então a desconcentrou, e ela se endireitou para olhar pela janela mais próxima. Lá estava ele, de costas, se aproximando cada vez mais do carro estacionado na calçada da casa. Ele tinha uma mala na mão, e seu jeito de andar parecia o de quem não olharia mais para trás. Não daquela vez. Daquela vez ela sentia ele arrancar um pedaço vital dela e levá-lo consigo.

This time I will be listening
Sing us a song and we'll sing it back to you
We could sing our own, but what would it be without you?

This heart, it beats, beats for only you

domingo, 16 de maio de 2010

Sinestesia

-por Otávio Silva

Ele via o mundo diferente do mundo. Ou o mundo que via o mundo diferente dele...

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Fora pedido aos aluninhos que fizessem uma atividade de desenho livre. Desenhassem aquilo que quisessem. Não poucos foram os que retratavam casinhas coloridas, sob sóis amarelos, num céu azul claro, sobre o chão verde gramado. Menos um. Um dos desenhos simplesmente mostrava a mesma coisa. Porém, a casa era azul, o Sol, verde. O chão gramado com flores e folhas amarelas...

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Numa tarde mole de domingo, o Sol fraco apenas clareava o parque, sem esquentar nem um pouco o frio daqueles dias de inverno. Eles eram apenas mais um dos casais que se deitavam sob as árvores já carecas, da estação. Passou por eles quase distraída uma menina das melenas dourados lisos e percebendo-os, pareceu-se horrorizada. Incrédula, amaldiçoou-os e saiu correndo para esconder o choro. Ele não entendeu aquilo, enquanto a sua companheira acalmava-o, sorrindo por dentro, saboreando o gosto agridoce da vingança...

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Em seu solitário apartamento, escutava suas músicas preferidas no último volume só nas segundas-feiras à noite. E toda semana, seus vizinhos reclamavam do barulho e ele não entendia. Aquela era especial para ele, a Lua se empinava cheia no alto da moldura da sua janela. Estranhou a demora pro porteiro ligar trazendo a reclamação dos vizinhos. Assim, foi até a cozinha para preparar algo que ele gostava muito. Cortava dois alhos e três cebolas, misturava-os e esquentava. Adorava o cheiro daquilo. Descobriu quando, em sua infância, procurando a mãe pela cozinha, encontrou-a cortando o alho, e sua empregada, uma cebola, para fins diferentes. Mas aqueles odores diferentes o encantaram e continuavam encantando. E ficava à noite toda chorando...

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Hoje, sua lápide testemunha que nasceu e viveu um homem igual. Em um mundo diferente. Ele via o céu amarelo e não se incomodava que os outros diziam que era azul. Ele não ouvia perfeitamente a música em volume abaixo de certo ponto. Ele gostava daquele cheiro de alho e cebola e acreditava chorar pela lembrança da mãe já falecida e não porque o simples fato de cortar cebola podia fazê-lo chorar. Não entendia porque um beijo selado, selava também um contrato que diz que as partes se pertencem e assim, devam ao outro obrigações e direitos, como não beijar mais conhecidos de um ou de outro.

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O que você chama de preto era o que ele chamava de branco. O que você chama de amor, ele chamava de amizade. O que você considera cheiroso, pra ele era ruim. A classificação dos sentidos, pra ele, era falha. Ele escutava gritos no silêncio, sentia o gosto das formas geométricas, tocava as nuvens e ouvia as estrelas. E ele vivia o mundo dele. Não o seu, nem o meu, nem o de ninguém. Ele não conceituava, não pré-determinava, nem dava palavras a aquilo que sentia. As pessoas procuram sentir o que os outros sentiram: uma chama que arde sem se ver e infinita enquanto dura; um azul da cor do mar e que corre pra chamar o seu benzinho...

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sigur Rós

-por Daniel Bagagli    


 

Bem ou mal; certo ou errado; baixo ou alto; pobre ou rico; solteiro ou casado; vitória ou derrota; preto ou branco. Seria o mundo mesmo assim? Simples?

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Constantemente temos essa idéia, a de que o mundo é formado por forças opostas. Pensamos (ou preferimos pensar?) desse jeito: simples assim. Até porque somos incapazes de grande abstração. Mais do que isso: somos demasiado orgulhosos e prepotentes a ponto de não querer reconhecer nossa impotência.

E eu lhes pergunto – de quê serve tudo isso, no fim? Seria assim o único jeito de provar (a nós mesmos, é claro) que somos os seres mais inteligentes que conhecemos?

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Certamente não somos.

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A excludência dos fatos não se aplica à nossa realidade. Não existem forças opostas – o bem ou o mal, o certo ou o errado –. Existem, na verdade, milhares de nuances, muitas delas escondidas de nossos olhos e mentes, coexistindo conforme piscamos. O Bem precisa do Mal para existir, e vice versa. Como seria possível dizer que algo é bom se não existisse outro algo ao lado dele que fosse ruim? E, mais ainda, como seria possível chamarmos de bom e ruim se não fosse um terceiro, ao meio dos opostos, como uma espécie de transição neutra?

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Pelo simples fato de pensarmos em compartimentos (espécies de caixinhas separadas umas das outras) que existem milhares de coisas negativas no mundo. O pré-conceito e o racismo provêm disso: da separação do bem e do mal – do homem pelo homem. As guerras também – do certo pelo errado.

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Matamos, desmoralizamos, destruímos uns aos outros pelo fato de pensarmos que o mundo é simples assim: ou preto ou branco.

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Mas com quem fica a rosa da vitoria no fim?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Eu Vou Tirar Você Desse Lugar...

-por Marina Veras e Otávio Silva

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Ela abriu os olhos vagarosamente e através da sua cortina fina e velha enxergou o Sol que, tímidamente, desaparecia no horizonte. Seu dia começava.

Entrou debaixo do chuveiro, a água fria percorria todo seu corpo nu, gerando um efeito semelhante ao da realidade que, aos poucos, tomava conta de seus pensamentos.

Agora, enrolada em uma toalha senta-se na cama – seus problemas são pesados demais para que consiga manter-se de pé. Ela encara a porta do armário de tom azul claro e desbotado, e aquela cor a faz lembrar da infância que nunca teve.

Procura – por mais tempo do que o necessário – alguma peça de roupa para vestir. O que ela queria encontrar na verdade não estava ali, nem embaixo da cama, nem no varal improvisado do banheiro. Sua dignidade já havia se perdido há muito tempo.

Diante do espelho um arrepio percorre seu pescoço. Tristeza e escuridão transbordam de seus olhos tão desgastados quanto o azul do armário. Aplica diversas camadas de maquiagem sobre seu rosto pálido, procurando esconder-se, inutilmente, por trás daquela máscara.

Ao sair de casa, caminha rebolando a passos pesados e relutantes. O barulho que seu salto faz ao tocar o asfalto soa como um grito desesperado implorando que ela volte para casa.

Entra por uma pequena porta, que, de tão escondida, parece invisível para a maioria dos que por ali passam. Ao mesmo tempo em que é engolida pela luz vermelha que ilumina todo o salão. Sente uma mão fétida e áspera deslizar sobre seu ombro até chegar ao seu seio, agora descoberto. Não sente mais seu corpo, se é que ela possui alguma propriedade sobre ele. Durante dezessete anos aprendeu que somos assim como o Sol: apesar de nos acordar de manhã, não é dono do céu o tempo todo.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

500 Dias Com Ele


- por Camilla Lopes

O óbvio, apesar de e por sê-lo, tem de ser dito.

Estávamos nós dois ali, onde sempre costumávamos nos encontrar e do mesmo jeito que sempre costumávamos ficar: eu com a minha cabeça encostada em seu ombro, e ele me envolvendo em um abraço, com seu queixo apoiado por cima dos meus cabelos. Era um dia comum, comum até de mais, e isso de certa forma me incomodava. O seu cheiro passava pelo meu nariz e conseguia se espalhar pelo resto do meu corpo, me fazendo perder os sentidos: eu não ouvia, nem sentia e nem enxergava mais nada além dele, como se eu precisasse me concentrar pra não perder o controle de mim mesma. Me perguntava se ele também tinha toda essa atenção voltada pra mim, se eu era o seu único foco naquele lugar com tantas outras coisas pra distrair, mas logo me censurava. Eu me sentia uma idiota por ficar pensando que talvez ele não quisesse estar ali, que talvez eu estivesse vivendo aquele momento sozinha enquanto ele olhava a jogada errada de algum menino em uma partida de futebol. Mesmo assim era inevitável cogitar a hipótese. Não acontecia nada! Nenhuma palavra bonita ou um carinho no rosto pra me avisar o que estava passando naquela cabecinha. Será que ele era assim com todas as outras? Para. Não se deve comparar com as anteriores. Eu então resolvi agir. Me desaconcheguei dele e coloquei minhas duas mãos sob o seu rosto, apertando suas bochechas e fixando os meus olhos o máximo que eu podia nos dele, com a esperança de conseguir ler o que eles escondiam ou então fazer uma transmissão de pensamento (ter de pensar em palavras certas a dizer e correr o risco de sentir o meu rosto quente e avermelhado era a última opção). Mas não, nadinha. Eu tinha uma capacidade quase nula de penetrar naqueles olhos, e ele já estava começando a estranhar a minha reação.

- Que foi? – e aquele sorrisinho lindo dele surgiu. Onde tinha ido parar minha respiração?
- Nada... – eu disse, voltando a esconder meu rosto no seu peito.

Babaca, não dá pra ver? Eu quero saber o que você pensa, e acho que já é mais do que a hora de você me dizer. Então eu continuei lá, escondida, resmungando comigo mesma em silêncio. Ele colocou sua mão no meu queixo e levantou a minha cabeça. Acho que era a vez dele de fixar seus olhos em mim. Será que ele também queria me dizer alguma coisa? Ele me deu um beijinho no canto da boca e me abraçou.

- Eu gosto muito de você.

Eu não sabia exatamente o que aquilo queria dizer, mas pelo menos queria dizer algo. Talvez o problema fosse eu, porque o óbvio estava ali, eu só não conseguia enxergar. Eu peguei na mão dele e o puxei pra seguir caminho, seja lá pra onde este nos levasse.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Princípios

-por Otávio Silva

Do dicionário: [s. m.] Aquilo que vem primeiro: sentimentos primeiros; elemento inicial; primeiras noções.

Quais são os seus?
Quanto valem?
Você os trocaria pelo quê?
Não diga que não trocaria por nada.
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Eu digo que troco os meus,
E você confessa também.
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Troco os meus princípios por não levar bronca da minha mãe.
E você, nunca os trocou por uma nota boa na prova?
Eu já os troquei por uma amizade.
E você, por ficar com a namorada?
Eu os troco por um gol na pelada com os amigos.
E você, pela grana que bancou aquela viagem.
Eu, por uma piada.
E você, pela sua reputação?
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Eu já troquei os meus princípios muitas vezes.
Troco por aquilo que me convém:
A harmonia em casa, a alegria de um amigo, um sorriso na cara.
E pra você, o que lhe convém?
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Aliás, quais são os seus princípios mesmo?
Quer trocar pelos meus?

sábado, 1 de maio de 2010

Sonhos Em Uma Caixinha

- por Camilla Lopes

A vida é feita de sonhos, certo? Certo. Com isso, acredito eu, todos nós concordamos. A real questão é: até que ponto estamos dispostos a ir atrás de algum sonho? Acho que escrevo sobre isso sem nenhuma conclusão já formulada na cabeça, pois essa é uma dúvida que eu sei que sempre tive, mas nunca parei pra tentar organizar as ideias.
Pra começar, pensem em quantas pessoas adultas vocês conhecem que estão plenamente satisfeitas com o rumo que suas vidas tomaram. Quantas estão morando à beira da praia tirando fotos do mar e dos peixinhos? Quantos viajam pelo mundo bancadas pela sua própria empresa? Quantas fizeram sucesso com sua banda e fazem grandes turnês até hoje? Sonhos todas tiveram, tal como a oportunidade pra realizá-los. Acredito que todos nós temos essa oportunidade, alguns com mais fácil acesso a ela, outros com menos. Então por que limitaram seus desejos a suas cabeças? Por que tanta gente olha pra Dança dos Famosos no programa do Faustão e fala “meu sonho sempre foi dançar! Preciso voltar a fazer aulas de ballet!”? Sabe o que mais me intriga? Elas não voltam a fazer. E pior ainda: se voltam, o esforço dura uma semana, um mês no máximo. E, em minha opinião, o grande causador disso é o comodismo. Sim, quando você é jovem, tem planos e mais planos pro futuro, e, mais importante ainda, força de vontade pra realizá-los (ou pelo menos pensar neles e dizer que os deixará pra mais tarde. Afinal, você é jovem). O tempo passa e, quando vai ver, surgem oportunidades de emprego. Por que não aceitar? Um dinheirinho a mais não faria mal a ninguém. O tempo fica mais curto, as suas antigas atividades são deixadas em segundo plano. O cansaço toma conta, você tem vontade de ficar em casa, ficar mais cinco minutinhos na cama, tirar o dia pra deitar no sofá e assistir filme, mas aquele dinheiro já virou essencial na nossa vida, porque agora você tem uma casa e um carro, está até pensando em se casar. E sabe de mais? Sempre teve vontade de ter filhos. O final da história todos já sabemos: é você parado no trânsito pensando como a sua vida podia ter sido diferente, como você deixou ela tomar esse caminho infeliz. Você, aquele pequeno revolucionário em épocas passadas, agora só mais um peãozinho na sociedade vivendo sua vida banal. Ok, eu posso estar exagerando um pouco, muitos sonham com essa vida banal, com o sossego da estabilidade e da situação confortável. Mas duvido que eles também não tenham deixado sonhos pra trás. Poucos moram em uma casa grande com móveis antigos, quadros na parede, um piano no canto e uma pequena biblioteca no andar de baixo. Têm seus filhos bem formados, netos correndo pela casa com fotos antigas na mão, perguntando das tantas viagens que você e seu companheiro ou sua companheira fizeram, o qual ou a qual você admira muito, mesmo depois de tantos anos juntos. Poucos têm seus diplomas espalhados pela mesa do escritório, junto com o orgulho que têm deles e do lindo trabalho que puderem exercer durante a vida profissional.
E bem, a única conclusão à qual chego escrevendo esse texto é a de que, se acontecer de eu relê-lo daqui a alguns anos, espero que o sentimento de nostalgia não tome conta de mim, e que eu não pense “sua idiota, você é exatamente o que você critica”.