O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






terça-feira, 13 de julho de 2010

Tempestade em Copos de Água e Café

-por Otávio Silva


Casaram-se lá pro mês de outubro do ano passado, na primavera. Depois de cinco anos namorando, era tempo já. Terminaram a faculdade, arrumaram emprego. Ela não agüentava mais a pressão da família pra saber quando seria o casório, além de estar curiosa e ansiosa pra conhecer o 'mundo de casado'. Ele estava cansado de brincar com a vida, queria assumir perante toda a sociedade uma vida séria, se desvencilhar do cordão umbilical da mãe e do dinheiro do pai, de uma vez por todas. Ambos se decepcionaram.

Mal chegamos a maio e tive de recebê-los em meu escritório. Trabalho como advogado civil em casos de família e, semana passada, eles me procuraram para entrar com pedido de separação e divórcio. Como instruído nos anos de faculdade, indaguei-os sobre os motivos que os traziam até mim para uma tentativa de reconciliação ou acordo. E bem, eu aconselharia os jovens formandos e aspirantes à profissão, de não tentarem isso. Ou senão, terão que colocar um divã no meio do seu escritório...

Sentido-os um pouco nervosos, servi-lhes dois copos cheios de água para se acalmarem. Nenhum dos dois sequer tocou seu próprio copo. Sentei-me na ponta da mesa, como se estivesse entre eles. O lábio inferior dela era constantemente atacado pelos dentes. Ele, apesar do ar frio e calmo, não conseguia abrir as sobrancelhas, nem direcionar os olhos a um lugar só.

O clima na sala não era tenso. Era enevoado por pólvora e foi só eu iniciar as primeiras palavras, para os dois começarem a explodir seus sentimentos e emoções que ainda nutriam um pelo outro. Acusações, reclamações, reivindicações, uma série de ações que impressionantemente nos levou ao primeiro dia de cônjuges morando sob o mesmo teto.

Após ele conseguir um belo e estável emprego, se casaram na mesma igrejinha que os pais dela. Após viajarem por quase três semanas por quase a Europa inteira em uma maravilhosa lua-de-mel, compraram uma casinha, com a ajuda da família e amigos, para morarem juntos. E depois de toda bagunça e da mudança, lá se foram eles. Como relatado por ela e confirmado, por vezes até complementado, por ele, o primeiro dia transcorreu da seguinte maneira, que eu penso que resume bem o relacionamento em questão como um todo e muitos outros...

Acordaram juntos de manhã, se demoraram um pouco na cama. Ela foi tomar banho enquanto ele tinha seus cinco minutinhos mais. Quando ela saiu do banheiro, ele entrou. Como era o primeiro dia deles morando juntos, ela resolveu colocar a toalha de linho branca que sua mãe dera para eles como presente de casamento. Assim como era tradição da família dela, as mulheres se casarem naquela igrejinha de bairro, era também a mãe dar uma toalha de linho branca quando a filha se casasse.

Ela, que nunca fizera nenhuma tarefa doméstica em sua casa e jurara de pés juntos para a família inteira durante toda adolescência que não as faria para marido nenhum, agora já tinha posto a mesa e preparado o café. E ele se juntou a ela, sentando ao seu lado, selando-lhe um beijo e amarrando a gravata, ao mesmo tempo. Olhou no relógio e descobriu-se mais atrasado do que pensara e por isso, ignorou os pães, frutas, frios e tudo que havia na mesa, colocando apenas um pouco de café na xícara. Já levantando-se e despedindo-se da querida esposa para ir trabalhar e ganhar dinheiro para a casa, ele deixou cair algumas gotas em sua camisa que vestia e na toalha.

Eu agora me sentia um celibatário ouvindo-a confessar sentir-se nervosíssima com tudo aquilo, para a surpresa do seu ainda marido. Os dois concordaram que naquele dia, ela não demonstrou nenhuma irritação. E ela defendeu-se dizendo que querendo ser uma boa esposa e a fim de não começar a desgastar a relação, relevou aquilo tudo e se propôs imediatamente a lavar a camisa e a toalha de mesa.

E enquanto eles falavam e desabafavam, os copos deles iam se esvaziando gradativamente. Centímetro a centímetro, de vagarosamente, sem eu perceber.

Bom, ele trocou a camisa, e foi trabalhar. E ela, ficou em casa. A toalha de linho ficou manchada e apesar de sua dificuldade em manusear os aparelhos todos de limpeza, secagem e passagem da camisa, esta não ficou com a mancha do café e então, foi devolvê-la ao guarda-roupa do marido, quando se deparou com a toalha de banho dele molhada e jogada em cima da cama. Confessou-me novamente a sua revolta, mas novamente, diante da surpresa dele no escritório, admitiu ter engolido seu sentimento, relevado mais uma vez o fato e ter simplesmente, devolvido a toalha a seu devido lugar.

Neste momento, sem eu ao menos notar ela fazer alguma pausa para as goladas, vi o copo dela praticamente vazio. Restava pouco para acabar quando o esposo, que apenas completava as falas dela, talvez por sentir-se vítima diante do já exposto e decidiu tornar-se primeira pessoa da história.

Na volta do trabalho, o marido, já cansado e faminto, fez-se de bom moço, e engoliu saliva para matar a fome, enquanto juntou-se à sua querida esposa no sofá da sala em frente à TV, por algum tempo. Após namorarem e se curtirem um pouco, foram à mesa, onde ela serviu um bife à parmegiana, que tentara aprender naquela tarde telefonando para a sogra. Ao experimentá-lo, para o susto dela, disse ter perguntado a si mesmo se fora banhado em água do mar, de tão salgado. Mas não fez menção nenhuma ao desgostoso sabor da comida, para não desencorajá-la na cozinha ou magoá-la.

Engraçado como notei que depois que ele falou, o copo dele havia esvaziado um pouco. E continuou...

Chegando ao armário, uma camisa no meio das outras o chamou atenção. Tinha uma marca de ferro de passar. Bem de leve, quase imperceptível talvez para alguém que não a usaria. Mas não para ele. Mas não pra ela, ele reclamou ou chiou. Simplesmente, não a usou mais. Relevou. Engoliu. Eu só não o vi engolir nada de água e para a minha admiração, seu copo já estava quase vazio.

Este primeiro dia retratado por eles foi parecido com o quarto, e também com o décimo. O vigésimo teve algo disso novamente e eu não sabia quando nem como pedir para eles pararem. Não sabia mais o que fazer. Não sabia se ali era o lugar para aquilo e ao mesmo tempo, sentia pena daqueles dois. Era óbvio o quanto eles ainda se gostavam desabafando todas as lembranças e sentimentos.

Não sabia por aonde ir. Sou advogado, não psicólogo ou conselheiro amoroso. Dizem que a justiça é cega, e o amor também. Às vezes, procuramos a melhor coisa a se fazer sem olhar a quem, pela justiça. E em outras, procuramos a melhor pessoa pra fazer o impossível, por amor. Quem é cego, não olha. Quem não olha, não vê. Quem não vê, não assiste. Quem não assiste, não atende. E atender é justamente aquilo que as pessoas procuram umas nas outras. Seja em contratos que atendam às necessidades comerciais de uma empresa, ou em compromissos amorosos que atendam às necessidades emotivas e carnais de cada um. E quem não vê, pelos outros sentidos consegue reconhecer algo, porque reconhecer é saber que é o objeto, mas não o conhece, pois conhecer é saber como ele é e sem um dos sentidos já se tem essa percepção afetada.

E assim, o que fiz foi encaminhá-los a um terapeuta amigo meu, da época de colégio pra ver se conseguiam fazer esvaziar a paciência deles, até a última gota. Seja de café, ou de água.

9 comentários:

  1. valeu a pena cada segundo do texto...
    um dos seus melhores textos, que eu vi aqui nesse blog.

    ResponderExcluir
  2. é engraçado como nós conseguimos nos perder nas coisas que pequenas que, então, se transformam em grandes...lindo texto =]

    ResponderExcluir
  3. Adorei teu blog ! Se puder passa lá em casa http://sindromemm.blogspot.com

    ResponderExcluir
  4. Perfeito. Coisas tão pequenas que destroem outras tão grandes!

    E hoje em todas as profissões temos que ser um pouco de tudo. As coisas se misturam, as pessoas se misturam e confundem tudo e todos!

    Muito bom :D

    ResponderExcluir
  5. paarabeens mlk
    texto fudidoo!!

    espero não ter que dar uma de psicólogo depois de formado.. ahhahaah

    ResponderExcluir
  6. Já disse isso, mas direi de novo: você tem o dom de saber utilizar cada palavra da melhor maneira possível nos textos. Ainda espero o livro!

    ResponderExcluir
  7. Leenha, eu amei demais esse texto, juro mesmo... o penultimo parágrafo é muito bom.. Voce vai se especializar nessa área do direito? haha
    Nunca duvide do seu talento!

    ResponderExcluir
  8. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  9. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir