O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






sexta-feira, 2 de julho de 2010

...Numa fila de cinema, numa esquina ou numa mesa de bar...

-por Otávio Silva


 

    Era sonhador. Apaixonava-se fácil, acreditava em amores da primeira até a última vista. Mas durante a semana, vestia a fantasia de trabalhador sério. Herdou dos pais um apertamento em São Paulo, daqueles "de porta pros fundos". Morava sozinho e prestava serviços a uma boa empresa de publicidade. Reclamava aos deuses, e aos orixás às vezes, quando seu chefe mandava-o entregar trabalhos para um dos grandes clientes na segunda-feira de manhã. Assim, não conseguia dar às suas receitas mensais o fim que elas mereciam: o fim da semana.

    Muito simpático, de sorriso fácil e de fácil abertura, chegava a todas as rodinhas em churrascos e bares com os amigos. Sorria sempre que conhecia alguém, pois acreditava que nunca teria uma segunda chance para causar uma boa impressão. Também por isso, vaidoso que era, habituou-se a usar os óculos de grau somente no ambiente laboral. Contrariava as sugestões oftalmológicas e nem na rua os usava. E andava muito na rua.

    Como herdara a moradia e o trabalho lhe rendia apenas os finais de semana, o transporte que usava era o público. Não tinha dinheiro para manter um carro. Logo, com o dinheiro da empresa, fazia duas baldeações no metrô e pegava mais um ônibus para ir ao escritório. Além de, um ônibus e, duas baldeações para voltar. Já decorara o caminho, não dependia mais de identificar os borrões e contornos das placas e indicações.

    Ele reclamava que a solidão o perseguia. Mas ele não percebeu que ele não deixava a solidão ir embora.

    Todos os dias, nosso personagem vai a pé de casa até o metrô. No mesmo horário. Todos os dias, ele passa na catraca, desce as escadas e espera o metrô chegar. Com uma margem de um ou dois minutos para mais ou para menos, o vagão chega à sua estação. Faz a baldeação na linha verde e segue em direção às estações da Av. Paulista. De lá, pega um ônibus que passa de dez em dez que desce a Bela Cintra, onde desce no terceiro ponto, imediatamente antes do posto de gasolina. Chega pontualmente, às 8h no seu trabalho. Todos os dias. Se o tempo está contra ele, ele deixa as calçadas e escadas pra trás em passos rápidos.

    Pacato trabalhador, morador solitário nunca se deu conta que milhares de pessoas fazem a mesma trajetória que ele. Em uma cidade como São Paulo, você anda num abismo de frieza e intimidação. Só de olhar pros lados, pode até cair. Do seu lado, passa todos os dias, uma linda moça dos cabelos dourados, que gosta dos mesmos filmes que ele. Um pouco mais apressado, alternando casacos marrons e pretos em dias de frio, e camisas coloridas no calor, um senhor de cabelos grisalhos trabalha em uma empresa concorrente a dele, e precisa de alguém justamente como ele. Sempre atrasado, corre um moleque que ouve todos os dias a discografia inteira daquela banda antiga que nem existe mais. No metrô, trabalha uma mulher que é prima de uma amiga de infância de sua mãe que morreu e não deixou nenhuma lembrança.

    Todos os dias, ele deixa escapar tantas oportunidades que nem poderia contar. Todos os dias ele divide o banco com um possível futuro chefe, dá passagem à possíveis mulheres de sua vida. Tudo isso por falta de um par de óculos. Nós buscamos, no nosso dia a dia, condições de nos encaixarmos na rodinha do churrasco do final de semana com pessoas que consideramos especiais. E deixamos de lado condições especiais de pessoas comuns que nos são apresentadas todos os dias. Ponha os óculos, de vez em quando.

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