O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






domingo, 16 de maio de 2010

Sinestesia

-por Otávio Silva

Ele via o mundo diferente do mundo. Ou o mundo que via o mundo diferente dele...

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Fora pedido aos aluninhos que fizessem uma atividade de desenho livre. Desenhassem aquilo que quisessem. Não poucos foram os que retratavam casinhas coloridas, sob sóis amarelos, num céu azul claro, sobre o chão verde gramado. Menos um. Um dos desenhos simplesmente mostrava a mesma coisa. Porém, a casa era azul, o Sol, verde. O chão gramado com flores e folhas amarelas...

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Numa tarde mole de domingo, o Sol fraco apenas clareava o parque, sem esquentar nem um pouco o frio daqueles dias de inverno. Eles eram apenas mais um dos casais que se deitavam sob as árvores já carecas, da estação. Passou por eles quase distraída uma menina das melenas dourados lisos e percebendo-os, pareceu-se horrorizada. Incrédula, amaldiçoou-os e saiu correndo para esconder o choro. Ele não entendeu aquilo, enquanto a sua companheira acalmava-o, sorrindo por dentro, saboreando o gosto agridoce da vingança...

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Em seu solitário apartamento, escutava suas músicas preferidas no último volume só nas segundas-feiras à noite. E toda semana, seus vizinhos reclamavam do barulho e ele não entendia. Aquela era especial para ele, a Lua se empinava cheia no alto da moldura da sua janela. Estranhou a demora pro porteiro ligar trazendo a reclamação dos vizinhos. Assim, foi até a cozinha para preparar algo que ele gostava muito. Cortava dois alhos e três cebolas, misturava-os e esquentava. Adorava o cheiro daquilo. Descobriu quando, em sua infância, procurando a mãe pela cozinha, encontrou-a cortando o alho, e sua empregada, uma cebola, para fins diferentes. Mas aqueles odores diferentes o encantaram e continuavam encantando. E ficava à noite toda chorando...

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Hoje, sua lápide testemunha que nasceu e viveu um homem igual. Em um mundo diferente. Ele via o céu amarelo e não se incomodava que os outros diziam que era azul. Ele não ouvia perfeitamente a música em volume abaixo de certo ponto. Ele gostava daquele cheiro de alho e cebola e acreditava chorar pela lembrança da mãe já falecida e não porque o simples fato de cortar cebola podia fazê-lo chorar. Não entendia porque um beijo selado, selava também um contrato que diz que as partes se pertencem e assim, devam ao outro obrigações e direitos, como não beijar mais conhecidos de um ou de outro.

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O que você chama de preto era o que ele chamava de branco. O que você chama de amor, ele chamava de amizade. O que você considera cheiroso, pra ele era ruim. A classificação dos sentidos, pra ele, era falha. Ele escutava gritos no silêncio, sentia o gosto das formas geométricas, tocava as nuvens e ouvia as estrelas. E ele vivia o mundo dele. Não o seu, nem o meu, nem o de ninguém. Ele não conceituava, não pré-determinava, nem dava palavras a aquilo que sentia. As pessoas procuram sentir o que os outros sentiram: uma chama que arde sem se ver e infinita enquanto dura; um azul da cor do mar e que corre pra chamar o seu benzinho...

3 comentários:

  1. pimaa,
    já tinha elogiado no msn, mas soh pra reforçar:
    tu tá cada vez melhor irmão!
    forte abraço, parabéns!

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  2. "Você está louca, ALice, mas as pessoas mais interessantes, sempre são"

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