O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Deficiência

Prefácio

A deficiência não precisa ser exclusivamente física ou mental. Pode, também, estar ligada a alguma relação turbulenta, causada muitas vezes por uma deficiência na forma pela qual um casal se entende. Uma deficiência no modo como um entendeu o outro.

*

Era uma noite de julho, seca e suportavelmente fria. Eu sabia o quanto ele gostava do tempo assim, e isso me fazia gostar também. Parei para pensar: “Incrível o tamanho da influência que ele tem sob mim. Penso que, talvez, não o admiro pelo fato de que seus gostos são semelhantes aos meus. Talvez seus gostos sejam semelhantes aos meus pelo fato de que o admiro.”
Estávamos, eu e ele, em uma sacada alta que dava de frente para um campo. A vista era extraordinária por simplesmente não se conseguir ver o fim daquela escuridão, e a paz que eu sentia não me permitia escutar o barulho que vinha por detrás da porta a nossa esquerda, a qual dava para um salão de festas. Um cenário perfeito, quase tão clichê quanto o de filmes, se não fosse o verdadeiro motivo que nos trouxe até ali. Ele me olhava com um olhar piedoso, como se estivesse acabado de entender um grande erro, o grande causador de algum grande problema. Erro ou problema o qual eu não conseguia imaginar.
Percebi sua inquietude e comecei a tentar ler aqueles olhos tão negros e tão infinitos quanto o breu que estava diante de nós. Toda aquela imensidão parecia guardar um milhão de segredos esperando serem descobertos, mas quanto mais eu tentava me aprofundar, mais eu me perdia em minhas dúvidas e mais meu coração disparava com todas as possibilidades que passavam pela minha cabeça. E então, depois desse momento que poderia ter levado segundos ou horas (eu não saberia responder), ele pareceu terminar de formular as frases que antes deveriam ser apenas um emaranhado de palavras na sua mente, respirou fundo e em um só suspiro disse, como se estivesse soltando o ar que ficou tanto tempo guardado dentro de si: “Ana, escute com atenção. Eu receio que não estejamos seguindo o mesmo caminho aqui.” Não entendi o que ele queria dizer com aquilo. Depois de tanto tempo, como não estávamos no mesmo caminho? Ele me disse que tinha planos. “Eu quero ir para o exterior, quero conhecer Roma, tomar chá com os antigos faraós do Egito, meditar com monges tibetanos, eu quero a vida. E do jeito que eu estou, eu só tenho a morte. A sua mãe me odeia, e por ela, não devíamos nos ver mais.”
O modo como ele falava, me dava agonia. Os seus gestos pareciam de quem queria se desvencilhar de algo que o prendia, de algemas, ou cordas, mas eu não entendia. Eu fazia de tudo por ele. Colocava as músicas que ele mais gostava pra tocar em seu quarto, ajeitava suas roupas nos armários, o levava toda semana pra comer no restaurante que ele ia com os amigos. E ele nunca se dava por satisfeito. Nunca. Ao ouvir isso, ele apenas passou a mão nos cabelos, virou de costas, e voltou para a festa. Por um instante, eu tive raiva da minha mãe. Devia ser culpa dela. Ela é que arruinava tudo ao meu redor, não podia me ver mais feliz do que ela, tinha ciúmes dos meus relacionamentos, inveja dos meus sucessos. E me bateu um aperto forte no peito, um medo de perder a pessoa que eu mais amava neste mundo. Senti-me só naquela escuridão e senti o ambiente muito mais escuro do que antes. Começava a chover. Resolvi entrar para o salão e nunca mais tocar no assunto. Segurei firme as lágrimas, passei o lenço nos olhos e aguentei. Não podiam me ver chorando, e não viram. Não aquele dia.

*

Ontem ele voltou de viagem. Logo que chegou, me procurou, marcou um almoço em uma lanchonete tipo americana, com o chão coberto por azulejos quadriculados, mesinhas quadradas com famílias felizes e paredes pintadas coloridas. Me contou sobre tudo que havia feito naqueles três anos que tinha passado longe. Muitas das coisas já ouvira antes pelo telefone ou lera nos seus postais, mas nunca conseguira sentir toda aquela felicidade e entusiasmo, e aquilo me incomodou. Quando ele parou de falar, não pude deixar de perguntar o porquê disso tudo, essas viagens, essa felicidade em estar longe de mim, de sua família, de tudo e de todos. E ele me disse que o sufocavam, que as pessoas tinham pena dele por ter passado só alguns meses no hospital e que tentavam fazer de tudo para mascarar a doença por qual passava. Que não queria as pessoas fazendo as coisas por ele, que adivinhassem onde queria comer, o que queria ouvir, vestir... Que estava cansado, e que resolveu viajar para fugir da doença e aproveitar o tempo que lhe restava...
Naquele momento eu não me segurei mesmo. Eu nunca tinha perguntado nada daquelas coisas, simplesmente fiz, por que achei que era o que precisava ser feito. Naquele momento, me dei conta de que as coisas que precisam ser feitas, devem ser feitas por aqueles que querem ou necessitam daquilo. Que ninguém deve ser obrigado a enxergar a vida pelos olhos dos outros, sentir a vida pela pele dos outros. Naquele momento, eu vi. Naquele momento, eu o enxerguei com meus próprios olhos, do outro lado da mesa, cair, perder a cor e revirar os olhos. E eu não prestei socorro, não chamei ambulância, não fiz nada. Senti que não devia, que ele queria estar ali. Era como se soubesse, se previsse quando fosse acontecer. E aí sim, eu chorei, porque sabia que ele o queria. Chorei muito sentida a morte do meu pai.

4 comentários:

  1. Vermelhinho do meu coração. Aqui é o Dão! Gostei dos textos, principalmente do segundo, e principalmente da última frase do segundo texto! Foi surpreso! Você, Camila, escreve bem. Espero que vocês ouçam isso muitas e muitas vezes! Beijinhos!

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  2. Acabei de dizer isso vermelhinho, vocês mandam muito! De verdade, eu leria um livro inteiro assim!!
    Alguém pode providenciar isso por favor?! Heheheh.
    Vocês tem talento, então, por favor, dividam com os outros isso!!!
    Textos lindos

    Carlinha

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  3. Gabriel Leone

    po...primeiro lugar parabens pra vcs dois...achei muito legal a iniciativa de vcs!
    segundo...os textos estao muito bons e por ultimo...continuem escrevendo viu! vcs tem bastante talento!=]
    um grande beijo!
    parabenssss!

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  4. muito fodaa esse!!!!!alias todos estao muito bons!!!parabenss pra vcss!!!adoreii

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