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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Acaso

Acordou. Mas não quis abrir os olhos. Estava tudo muito quieto, não era sua casa. Não sabia onde estava, mas sabia que não era sua casa.

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Morou quase a vida inteira sozinho. Todos os dias, de manhã, acordava cedo para comprar pão e jornal. O pão ele já não come mais, de acordo com as orientações do doutor. O jornal era a grande ocupação e maior companhia durante a tarde. Nesses passeios matinais, Seu Carlos demorava em torno de uma hora para atravessar dois quarteirões. E mais quase uma pra voltar. Demorava-se mesmo. Apreciava aqueles quase duzentos metros de caminhada. Cumprimentava os transeuntes, o dono do boteco, o sapateiro e a mulher, o dono do açougue. Parava um pouco pra contemplar algum detalhe novo que ainda não se dera conta e todos aqueles outros detalhes que ele já conhecia de cor e salteado...
Antes de sair de casa, Seu Carlos penteava de lado os seus finos cabelos prateados, escolhia uma camisa bonita, apertava o cinto da calça, engraxava os sapatos e saía... “Saio para tomar meu banho de ar”, ele dizia. Fizesse sol ou chuva, lá estava ele, todos os dias. Naquela pequena cidade, diziam que todo mundo se conhecia, mas não era verdade. Todos conheciam o Seu Carlos. E chegavam a acreditar que ele estava ali antes mesmo da cidade. Mas também não era verdade.
Carlinhos fora mandado para o Brasil durante a Segunda Guerra. Veio para acompanhar a decisão de Getúlio Vargas sobre de que lado iria ficar na guerra. Era soldado dos fascistas, mas se perdeu de sua tropa no meio do caminho. Morara na Itália e, quando moço, era alegre, extrovertido e muito vaidoso. Conquistara a todos e a todas com seu sorriso. Mas seu coração era de Valentina, uma menina estudiosa e que não ligava para os encantos da juventude. Carlinhos viera para cá, e nunca mais teve contato com ninguém do lado de lá do Atlântico. Botava a culpa no mar, que era muito grande pra poder atravessar, senão iria nadando encontrar os antigos conhecidos. Se era solitário? “Magina, é até bom. Não tem ninguém pra dividir a cama comigo.” Se era triste? "Claro que não, tenho uma vida inteira pela frente" era o que ele dizia tossindo forte pelo esforço de uma risada.

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Tornara-se médica. Gostava da ideia de poder ajudar os outros e, ainda depois de aposentada, viajava de cidade em cidade do interior daquele brasilzão para tentar melhorar a infra-estrutura de cada local. Gostava de botar as mãos na massa! Chegou ao Brasil para dar aula em uma universidade da capital, mas mesmo assim não se sentira útil o suficiente e resolveu sair tentando satisfazer essa sua necessidade...
Acordou um dia de manhã e olhou pela janela de sua pequena casa, como de costume. “Um dia como tantos outros”, pensou. Aquelas próximas duas semanas iria passar em uma pequena cidade do interior de São Paulo, o tipo de cidade pequena interiorana em que se tem a impressão de que todos se conhecem. Sentou-se à mesa sozinha, tomou seu café e levantou-se novamente para se arrumar: colocou um jeans surrado e uma camiseta confortável, fazendo um tipo de careta. Era inevitável para ela, mesmo sabendo o quão satisfeita se sentia com aquilo que fazia, pensar no caminho solitário que escolheu para si.
Quando pronta, seguiu para a porta sem muito mais demora e pegou o ônibus que a levaria para o projeto em que se aplicava agora, no qual dava auxilio médico às crianças carentes daquela região. Olhava para a rua através da janela distraída, vendo as pessoas andarem pelas suas rotinas, e imaginando a vida de cada uma. Um homem em especial chamou mais a sua atenção. Era esbelto e charmoso, apesar de sua idade já avançada. Seu jeito a lembrava de alguém por quem parecia guardar muito carinho, mas ela não conseguia se lembrar de quem.
O ônibus parou em um semáforo, e isso a deu mais tempo para observar o senhorzinho em seus pequenos passos. De repente, o homem parou e abaixou sua cabeça. Colocou a mão sob o peito, parecendo tentar descobrir desesperadamente para onde o ar havia ido. E, quando ela se deu por si, o querido homem esbelto estava em seus braços, os dois sentados no meio fio da rua enquanto o ônibus avançava para seguir caminho.

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Seu Carlos abriu os olhos cuidadosamente, sem saber o que esperar. Sabia que não estava em sua casa. Sua vista foi aos poucos desembaçando e os móveis tomando forma, tal como os traços de uma mulher que estava estendida ao lado da cama na qual estava deitado. Tudo pareceu acontecer muito lentamente, mas não tão lento quanto o tempo que levou para ele ver aquele rosto novamente. Perguntou para si mesmo algumas muitas vezes se era devaneio seu, ou se estava morto. Tudo aquilo não fazia sentido algum. Até que se deu conta de que, naquele momento, isso não interessava, pois era ali que queria estar, independente do motivo. Então, se entregando àquele sensação única que esperou tantos anos para sentir, soltou em um alívio “Valentina...”


- "Quando menos se espera as coisas acontecem" já é quase um ditado popular. No entanto, de fato, as coisas de verdadeira importância para nós sempre nos surpreenderão, não importa o quanto tentamos prevê-las.

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