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domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sociedade

Não dormiu bem. Como em todas as noites, sentiu-se desconfortável com o colchão e, nos seus sonhos, reclamou de seu travesseiro. Ainda no escuro da madrugada fria e opaca como a de São Paulo, foi ao banheiro, livrou-se dos embargos do dia anterior, tomou uma rápida ducha fria e, como de costume, cortou sua pele junto as pêlos da barba. Antes mesmo de olhar pela janela da sala, já previa o trânsito que o esperava. Vestiu uma calça e um par de sapatos pretos, uma camisa azul clara quase branca, uma gravata listrada, que estava usando na noite em que conhecera Jasmin... Queria esquecer tudo de uma vez, mas não conseguia. Puxou o paletó do cabide e foi chamar o elevador do prédio. Foi até o quarto de sua filha. Ane ainda dormia, como todos os dias e, como todos os dias, sentiu a angústia no peito de deixá-la em casa arrumar suas coisas sozinhas antes da perua da escola vir buscá-la, mas era por ela que saía cedo todos os dias e chegava tarde todas as noites.

No caminho do trabalho, em meio ao incontável número de carros absurdamente parados diante de um farol verde, Ricardo voltava a pensar em sua filha. Olhava aquelas famílias inteiras debaixo de pontes... Só o que tinham era uns aos outros, mas os tinham. E ele que trabalhava tanto para dar um conforto, uma vida melhor a Ane, não conseguia dar a si mesmo.

No trabalho, o agora Sr. Ricardo deixava para fora da porta do escritório todo e qualquer pensamento da vida pessoal que podia ter, não podia e nem gostava de misturar os dois âmbitos de sua vida. O Rica, como era chamado pelos colegas de trabalho durante happy hours de quinta-feira que ele frequentava enquanto esperava acabar o horário do rodízio, era do departamento de Recursos Humanos. Era ele quem tinha o papel de demitir e contratar pessoas novas, funcionários novos. Às vezes eram só peças novas. Brincavam que ele tinha o poder de demitir até o presidente da empresa, se quisesse. Mas ele não brincava em serviço. Atendia muitas cartas, e-mails e aspirantes a todos os tipos de cargo, todos os dias. A maioria inevitavelmente não atendidos quanto aos seus pedidos.
Naquele dia, sua secretária anunciou a entrada de um 'figura engraçado', que pedia para ser entrevistado. Mandou que entrasse. E realmente, o rapaz de fronte a ele, era, no mínimo, irônico para a situação. Com um par de chinelos havaianas separando os pés do chão e canelas finas e com cicatrizes que acabavam em um joelho coberto pela barra de uma bermuda tactel, interrompida na altura dos quadris por uma camiseta branca regata.
O jovem rapaz, auto-intitulado Zé Ninguém, apresentou-se como recém-formado em uma universidade daquelas de esquina no curso de Administração. Sem acreditar muito no que ouvia, Ricardo dava corda àquela conversa. O garoto requeria apenas o cargo de vice-presidente da empresa. Curioso com a audácia, pediu para que o jovem se sentasse e lhe convencesse porque devia admiti-lo:
-Conte-me suas experiências, senhor. - cordial e sarcástico Ricardo começou a entrevista, como de praxe. E o senhor a quem ele se referia, começou a responder, com a maior segurança do mundo:

- Não tenho muita experiência na área pela qual imagino que o senhor esteja interessado. Tenho, no entanto, uma grande vivência no assunto “vida”.

- Acho que tal resposta justifica um pouco o vestuário e as suas exigências quanto ao cargo. Mas explique, - disse Ricardo, mais curioso do que se permitia estar- o que quer dizer com “vivência no assunto ‘vida’”?

- Tenho meus princípios, senhor. E eles vão além da experiência de trabalho. Serei breve se me permitir, e mostrarei aqui o que estou falando.

- Estou ouvindo. - disse Ricardo, sabendo que estava indo longe demais com aquela historia, mas se sentindo viciado nas palavras que poderiam vir da boca daquela pessoinha tão estranha e interessante.

- Me diga, qual o propósito de tudo isso, afinal? Digo, de toda essa empresa e das relações que se mantêm nela. Entendo que vivemos em um mundo de seleção natural, e nada mais justo do que aqueles que se esforçam mais se destacarem mais. Não digo que sou a favor de todos abrirmos mão de nossos luxos e benefícios, afinal é incrível tudo que nós conquistamos cientificamente. Mas não pode faltar caráter. O homem não sabe seu limite, até onde ele pode ir sem prejudicar a si mesmo e ao próximo. É preciso equilíbrio, é isso que penso. Muitos tem pouco e poucos tem muito. Onde esta o equilíbrio nisso? Nós podemos mudar a sociedade, porque nós somos a sociedade. Se não quem vai mudá-la? Falta aqui atitude. Acredito que as pessoas têm consciência, mas não tem atitude.

Ricardo se mantinha paralisado, estupefato. Em um momento anterior, com certeza aquelas havaianas surradas já teriam saído de sua sala muito antes, junto com o corpo que as movia. Mas, naquele dia, ele seguiria adiante com aquele conversa.

- O que me leva a dizer que se não se está satisfeito com o modo pelo qual vive, (continuou Zé Ninguém) procure outra coisa que te satisfaça. Sei que se tem medo de mudar, e que precisamos lutar para termos nosso conforto, darmos comida para nossos filhos. Pois então lute por algo que você admira, não por algo que despreze. O que vivemos pensando é que sempre teremos uma segunda chance para fazermos o que gostamos. Mas não temos, a vida é uma. Este é o meu diferencial, senhor. Gosto do que faço, e estou aqui lutando por o que gosto. Sem, porém, me desvencilhar de meus ideais. Mostro assim, também, que não só é importante como possível haver um equilíbrio dentro de uma empresa, dentro de uma sociedade.

De repente a sala ficou quieta, podendo se escutar apenas as respirações ofegantes.

“O cara parece um aspirante a comunista ou anarquista, viciado em Rousseau e Thoreau”, pensou Ricardo. E então, respirando fundo e se recompondo, Rica pegou sua pasta de couro pesada e seguiu em direção a porta, sentindo um suor frio escorrendo pela sua testa.

- Me desculpe, mas não posso ficar. Chamarei outro profissional para conversar com o senhor.

E saiu de lá sem saber o que fazer, apenas pensava. Pensava em Jasmin, o quanto o sentimento pela sua morte o abalara, mas que agora conseguia sentir apenas sua falta e como tudo ao lado dela tinha o feito feliz. Pensava nos seus planos que foram enterrados junto a ela, mesmo ainda tendo toda vida pela frente e na estagnação que havia chegado. Ricardo não saiu nu pelo meio da rua e nem pegou as malas e foi embora. Não tivera a conversa mais importante de sua vida e saiu comprando livros de auto-ajuda. Tinha uma filha, tinha amor por ela, e tinha responsabilidades. Mas saiu mudado, e só Deus sabia a qual conclusão chegaria até chegar à porta de sua casa. A caminhada seria longa.

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