O PAPEL É O MELHOR OUVINTE, PORQUE NÃO TE ESCUTA SÓ PRA ESPERAR A VEZ DE FALAR






sábado, 28 de agosto de 2010

Horário Político Gratuito

-Otávio Silva


 

    "Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada com uma cuia de esmola e uma viola na mão. O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas e cantou essa música, que contava uma história que era mais ou menos assim..." (Raul Seixas)

    Eu e meu filho paramos para ouvi-lo também:

    Durante anos, trabalhei em uma escola. Varri os corredores, limpei as salas, virei os sacos de lixo. Desgrudei chicletes e descobri colas debaixo das mesas, arrumei o cenário de diversas apresentações, guardei coisas que os alunos esqueciam. Fiz de tudo.

    Algumas pessoas ali significam muito pra mim até hoje, mas a maioria dos que por ali passavam nunca souberam que eu sequer existi. Passavam por mim como quem passava pela porta de uma sala. Olhavam pra mim com aquele olhar de metrô, sabem? – dizia ele, representando todo ato daqueles dizeres - Aquele olhar que espera ser notado para imediatamente ser desviado. Era triste. Das que tiveram alguma importância em minha vida, guardo principalmente, uma professora de História do oitavo ano. Ou melhor, certa fala em determinada aula dela.

    Era começo de ano, provavelmente, uma daquelas apresentações que os professores faziam aos alunos novos todo ano. Eu, no corredor largo do segundo andar do prédio da escola, parara sob o sol quente - cujos raios ainda inclinados pela manhã ultrapassavam a moldura da vidraça escancarada - como é característico da época do carnaval, que, mal as aulas haviam começado, já se aproximava.

    Parei para descansar um minutinho. Apoiei um dos cotovelos no parapeito da janela e a mão na ponta seca da vassoura. Com o outro braço, secava os pingos de suor que escorregavam do cabelo para a testa e eventualmente para os olhos, o que já atrapalhava o meu serviço. Virando-me para uma das salas do corredor, a porta entre aberta me permitiu ouvir um pouco da apresentação da professora que me marcou até hoje.

    Ela apresentava sua matéria: povos distantes, em épocas longínquas; sua programação: duas provas durante o semestre... Era incrível a lembrança daquele velhinho. Contava a pontuação das provas, o horário das aulas. Com toda certeza, lembrava-se muito mais agora que os alunos quando deveriam. Disse ela também que muitas vezes se afastaria do conteúdo em si para falar sobre a atualidade, o mundo, e, sobretudo, sobre a Política.

    E aí o que, então, me marcou tanto: disse ela que Política é escolha. Todo tipo de escolha. Neste momento, meu interesse sobre a aula já havia sido notado, e a porta se fechara. Assim como um aluno que tivesse ficado para recuperação, eu não entendi no momento o que ela queria falar. Mas durante anos eu não só carreguei a frase comigo, como também deixei que a frase me carregasse. Hoje eu posso compreender o que ela disse e é isso o que tento dizer pra vocês, jovens que pararam para escutar esse velho de barbas já brancas.

    Os olhinhos do velho brilhavam com o crescente número de pessoas que parava em volta dele para ouvir algumas palavras. De certo, sentia-se agora o mestre diante de uma classe toda interessada.

    Política é escolha, meus jovens. Toda escolha. Você vota naquele que você escolhe para governar o seu país, mas não só! E
indicava o dedo torto, cumprido e cheio de veias da idade, como sinal de atenção. O seu governante escolhe o que vai ser do seu país, como representação do que vocês escolheram para ele fazer! Política é escolha, como a escolha que vocês fizeram de parar para ouvir um velho na rua. Mesmo tendo bastante gente aqui, a maioria passou reto, como sempre. Política é escolha, quando vocês decidem, debaixo do oceano de opções que tem, o que vão estudar e com o que vão trabalhar! Política é escolha quando você opta por gastar maior parte da grana do mês para a escola do seu filho ou para viajar com a mulher nas férias, quando você e sua mulher preferem não terem filhos para curtirem a vida. É escolha quando você tenta sair da casa dos pais pra viver sozinho. E ele criava um exemplo diferente pra cada pessoa que ali o escutava, para o homem de terno e gravata, para a mulher gorda de vestido, para a senhora bem arrumada de chapéu, para o casal de adolescentes tomando um picolé, para o turista com máquina fotográfica no pescoço, para o cara gordo com bigode também... É escolha quando você prefere contratar uma pessoa pra sua empresa pela origem ou cor dela e não sua capacidade profissional... Olhou pra mim e para o meu menino com atenção diferente. Eu me mostrava muito interessado durante toda a conversa, enquanto meu garoto puxava-me a fim de me distrair a todo instante para irmos embora logo. E o velho olhou fixo nele. Ele deve ter percebido que o guri não se interessou muito por aquele papo. O pequeno apertou minha mão com força, puxou minhas calças com medo e tentava se esconder atrás de minhas pernas, enquanto aquele dedo velho diminuía a distância dele.

    Senti os olhos já cinzas do velho, por detrás dos cabelos e da barba longos e brancos, atravessarem minhas pernas em direção aos olhos do meu filho, e o homem terminou seu discurso da seguinte maneira:

    -Política é escolha, moleque, quando você escolhe a roupa que vai sair hoje. E assim como na sua casa, se você não escolhe e seus pais são quem escolhem a sua roupinha, se você não quiser escolher alguém para te representar, alguém vai escolher por você. E com certeza, não serão seus papais.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Nostalgie


- por Camilla Lopes

No fundo da sua alma, esperava um acontecimento. Como marujos em perigo, seus olhos desesperados sondavam as solidões da vida a que fora destinada, procurando na distância alguma vela branca, nas brumas do horizonte. Esse acontecimento era uma incógnita. Todas as manhãs, ao despertar, tinha a impressão de que ele ocorreria no transcorrer daquele dia. Ouvia todos os ruídos, erguia-se em sobressalto, espantada de que o acontecimento não chegasse. Ao pôr do sol, sempre mais triste, desejava que o dia seguinte não tardasse. – Madame Bovary

O próprio Gustave Flaubert, autor do livro, certa vez confessou: “Emma Bovary c’est moi”. Eu ousaria ir mais fundo: todos somos. Quem nunca ficou aflito de ansiedade para algo acontecer em sua vida mesmo quando tudo estava em seu devido lugar que atire a primeira pedra. Talvez o problema seja exatamente tudo estar em seu lugar. Ok, eu devo estar falando o óbvio. A felicidade não está no objetivo alcançado, mas no caminho percorrido, certo? Certo. O real problema, acho, é quando começamos a pensar em coisas que aconteceram e que gostaríamos que acontecessem de novo, ou então que idealizamos e não se concretizaram do jeito esperado. Às vezes até mesmo o que queremos dizer acaba perdendo o contexto e ficando para trás. Pela atual estabilidade, acabamos perdidos nas lembranças - tanto do que foi, quanto do que teria sido -, as quais pouco a pouco se apagam. “Os detalhes se enevoaram, mas a saudade ficou”. É, queridos. Ninguém vive cada dia como se fosse o último.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Solilóquio

-por Otávio Silva


 

-Ninguém vai ouvir você. Ou pelo menos não porque realmente quer. Ah, já lhe ouviram? Tudo bem, foi só para esperarem a vez de falar. Olha, se você quiser que alguém lhe ouça, contrate um psicólogo, psiquiatra, terapeuta, ou coisa do gênero. É verdade. As pessoas gostam é de falar! Falam de si mesmas, falam de você, falam dos outros, falam de mim... "Falem bem, falem mal..."? Ah, isso não funciona pra mim, sério. Peço para que, por favor, não falem de mim. A opinião dos outros não me importa. Nem um pouco. Eu falo dos outros? Claro que não. Se eu vejo alguém diferente na rua? Ah... Talvez eu guarde pra mim. Pensar também é falar? Bom, é falar consigo mesmo, não é? Isso também conta? Bobagem! Poxa, mas se mostrar pros outros é muito difícil, deixar máscaras e personagens, espinhos e armaduras é ruim, muitas vezes. Aceitar meus próprios defeitos? Que defeitos, tá doido? Tá bom, todos nós temos defeitos. Mas eu não quero que os outros saibam dos meus!

    -Deixar a vaidade e a auto-estima de lado e aceitar os seus próprios defeitos e falhas são os primeiros passos pra começar a aceitar os defeitos dos outros, e com isso, se livrar de camadas de orgulho, inveja, parar de alto estimar os outros e reparar mais no próprio umbigo.

    -Pronto, já falou? Posso falar agora? Escute, se quiser ser escutado, procure um papel e uma caneta. Eles são os únicos que vão te escutar sem esperar a vez de falar, eu não.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Frère Jacques

-por Otávio Silva


Há quanto tempo você não dorme?

Você dorme?

Eu digo: você realmente dorme?

Você consegue passar uma madrugada inteira na cama sem se levantar pra nada antes do necessário?

Será?


Será que não tem uma torneira aberta?


Será que não tem uma porta aberta?


Feche-as, pois entra vento pelas portas e a água da torneira corre bem rápida!

E você não vai nem querer ver o estrago na sua conta no final do mês.


Será que você vai conseguir pagá-la?

Ainda tem todas as outras também.


Será que todos estão bem?

Fique tranqüilo: notícia ruim corre rápido e se acontecer algo com alguém que não está por perto, você não vai poder fazer nada mesmo.


Será que é dor de barriga?

Ou de garganta? Ou de cabeça?


Será que sua consciência pesa escondida no travesseiro?

Será que todos vão descobrir?
Descobrir o quê?

Que você não consegue dormir.


Frère Jacques

Frère Jacques

Dormez-vous?

Dormez-vous?


Sonnez les matines,

Sonnez les matines.

Ding, ding, dong.

Ding, ding, dong.

sábado, 7 de agosto de 2010

Happiness is Only Real When Shared

-por Otávio Silva


 

    -Que felicidade! Eu não poderia estar mais feliz!

    -Isto é óbvio.

    -Jura?! Está tão na cara? Deve estar escrito na minha testa, não é?

    -Não, na sua cara só os mesmos óculos tortos e as espinhas de sempre. E na testa, algumas rugas novas, pra falar a verdade.

    -Poxa! Não precisava me lembrar dessas coisas. Mas por que raios você disse que é óbvio eu não poder estar mais feliz?

    -Porque isto é impossível.

    -Ahn?!

    -Felicidade é só um sentimento. Não dá pra medir sentimentos.

    -Claro que dá!

    -Em qual escala? Metros, quilogramas? Graus centígrados, talvez?

    -Em nenhuma destas, oras! Mede-se pelo número de sorrisos na cara por dia.

    -Ah, deixa de besteira! E os sorrisos amarelos, entram na conta?

    -Ah... Estes não contam...

    -Não faz sentido. Os sentimentos são abstrações ideais e subjetivas dos seres humanos: nenhum tipo de objetivação seria capaz de calculá-los.

    -Então somos todos felizes iguais?

    -Não. Claro que não. Pessoas são felizes ou não, simplesmente. E mais: "feliz" foi só o nome que alguém inventou pra descrever sua própria abstração. Portanto, se você pensa que sente a mesma coisa que esse alguém, chame-se de "feliz"; se não, não.

    -E o que é que significa "ser feliz", então?

    -Pelo nosso queridíssimo amigo dicionário, felizes são aqueles que se sentem satisfeitos e contentes. E vai de cada um se sentir feliz com o que for.

-Ah, mas que mediocridade! Pensamento pequeno, amigo!

-Este é o problema: ultimamente as pessoas querem ter sempre mais e mais e nunca se contentam: o carro mais rápido, o celular menor, o tênis da moda; nunca se sentem satisfeitos: querem ser o vencedor, o número 1, nota 10, sucesso sempre... Nada é o suficiente.

    -É isso aí! O segundo lugar é o primeiro dos perdedores.

    -Então tá. Vá ser o primeiro colocado e vencedor sozinho enquanto eu vivo em festa com os perdedores.

    

terça-feira, 3 de agosto de 2010

“Isto é só um lugar e não um destino.”

-por Otávio Silva


 

O mundo dá voltas

E nós damos voltas no mundo

O que hoje é aqui

Amanhã lá será

Junto com o ontem que passou já.


 

O tempo é independente

De você, das suas obrigações

Dos seus problemas e felicidades

Ele não pára nunca

Por mais que você queira


 

Por mais que você corra,

Sempre vai ficar pra trás.


 

Por mais que você aproveite cada segundo,

Cada mísero segundo é cruel.


 

Passa, deixa seu rastro invisível

E vai embora

Para nunca mais voltar

Pra você nunca mais encontrá-lo.


 

Não pare no tempo.

Ele não vai parar em você.