-Otávio Silva
"Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada com uma cuia de esmola e uma viola na mão. O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas e cantou essa música, que contava uma história que era mais ou menos assim..." (Raul Seixas)
Eu e meu filho paramos para ouvi-lo também:
Durante anos, trabalhei em uma escola. Varri os corredores, limpei as salas, virei os sacos de lixo. Desgrudei chicletes e descobri colas debaixo das mesas, arrumei o cenário de diversas apresentações, guardei coisas que os alunos esqueciam. Fiz de tudo.
Algumas pessoas ali significam muito pra mim até hoje, mas a maioria dos que por ali passavam nunca souberam que eu sequer existi. Passavam por mim como quem passava pela porta de uma sala. Olhavam pra mim com aquele olhar de metrô, sabem? – dizia ele, representando todo ato daqueles dizeres - Aquele olhar que espera ser notado para imediatamente ser desviado. Era triste. Das que tiveram alguma importância em minha vida, guardo principalmente, uma professora de História do oitavo ano. Ou melhor, certa fala em determinada aula dela.
Era começo de ano, provavelmente, uma daquelas apresentações que os professores faziam aos alunos novos todo ano. Eu, no corredor largo do segundo andar do prédio da escola, parara sob o sol quente - cujos raios ainda inclinados pela manhã ultrapassavam a moldura da vidraça escancarada - como é característico da época do carnaval, que, mal as aulas haviam começado, já se aproximava.
Parei para descansar um minutinho. Apoiei um dos cotovelos no parapeito da janela e a mão na ponta seca da vassoura. Com o outro braço, secava os pingos de suor que escorregavam do cabelo para a testa e eventualmente para os olhos, o que já atrapalhava o meu serviço. Virando-me para uma das salas do corredor, a porta entre aberta me permitiu ouvir um pouco da apresentação da professora que me marcou até hoje.
Ela apresentava sua matéria: povos distantes, em épocas longínquas; sua programação: duas provas durante o semestre... Era incrível a lembrança daquele velhinho. Contava a pontuação das provas, o horário das aulas. Com toda certeza, lembrava-se muito mais agora que os alunos quando deveriam. Disse ela também que muitas vezes se afastaria do conteúdo em si para falar sobre a atualidade, o mundo, e, sobretudo, sobre a Política.
E aí o que, então, me marcou tanto: disse ela que Política é escolha. Todo tipo de escolha. Neste momento, meu interesse sobre a aula já havia sido notado, e a porta se fechara. Assim como um aluno que tivesse ficado para recuperação, eu não entendi no momento o que ela queria falar. Mas durante anos eu não só carreguei a frase comigo, como também deixei que a frase me carregasse. Hoje eu posso compreender o que ela disse e é isso o que tento dizer pra vocês, jovens que pararam para escutar esse velho de barbas já brancas.
Os olhinhos do velho brilhavam com o crescente número de pessoas que parava em volta dele para ouvir algumas palavras. De certo, sentia-se agora o mestre diante de uma classe toda interessada.
Política é escolha, meus jovens. Toda escolha. Você vota naquele que você escolhe para governar o seu país, mas não só! E
indicava o dedo torto, cumprido e cheio de veias da idade, como sinal de atenção. O seu governante escolhe o que vai ser do seu país, como representação do que vocês escolheram para ele fazer! Política é escolha, como a escolha que vocês fizeram de parar para ouvir um velho na rua. Mesmo tendo bastante gente aqui, a maioria passou reto, como sempre. Política é escolha, quando vocês decidem, debaixo do oceano de opções que tem, o que vão estudar e com o que vão trabalhar! Política é escolha quando você opta por gastar maior parte da grana do mês para a escola do seu filho ou para viajar com a mulher nas férias, quando você e sua mulher preferem não terem filhos para curtirem a vida. É escolha quando você tenta sair da casa dos pais pra viver sozinho. E ele criava um exemplo diferente pra cada pessoa que ali o escutava, para o homem de terno e gravata, para a mulher gorda de vestido, para a senhora bem arrumada de chapéu, para o casal de adolescentes tomando um picolé, para o turista com máquina fotográfica no pescoço, para o cara gordo com bigode também... É escolha quando você prefere contratar uma pessoa pra sua empresa pela origem ou cor dela e não sua capacidade profissional... Olhou pra mim e para o meu menino com atenção diferente. Eu me mostrava muito interessado durante toda a conversa, enquanto meu garoto puxava-me a fim de me distrair a todo instante para irmos embora logo. E o velho olhou fixo nele. Ele deve ter percebido que o guri não se interessou muito por aquele papo. O pequeno apertou minha mão com força, puxou minhas calças com medo e tentava se esconder atrás de minhas pernas, enquanto aquele dedo velho diminuía a distância dele.
Senti os olhos já cinzas do velho, por detrás dos cabelos e da barba longos e brancos, atravessarem minhas pernas em direção aos olhos do meu filho, e o homem terminou seu discurso da seguinte maneira:
-Política é escolha, moleque, quando você escolhe a roupa que vai sair hoje. E assim como na sua casa, se você não escolhe e seus pais são quem escolhem a sua roupinha, se você não quiser escolher alguém para te representar, alguém vai escolher por você. E com certeza, não serão seus papais.